Educação Convivial

A INSUFICIÊNCIA DA EDUCAÇÃO ESCOLAR
FRENTE AO CERNE DA PROBLEMÁTICA BRASILEIRA

Dizer que a questão central do Brasil é a educação já é lugar-comum. Também achamos que é, mas duvidamos que o modelo escolar de educação que é praticado há séculos seja capaz de responder a essa questão, mesmo se for melhorada a qualidade do ensino das diferentes disciplinas.

Para quem se dá o trabalho de estudá-lo, o Brasil aparece como um drama secularmente insolúvel – e as razões estão bem além das dificuldades com a escrita ou a matemática: estão nas características do convívio humano mais elementar, que fazem que, apesar de cordiais, sejamos incapazes de construir entre nós relações confiáveis – as quais são o cimento que transforma um amontoado de pessoas em uma sociedade. As razões disso são tema para outros trabalhos: importa-nos agora é que, embora a grande fonte de idéias e inovações sejam os indivíduos, não existe implementação de idéias, e portanto nenhuma solução ou realização historicamente significativas, senão via sociedade.

A escola que conhecemos não apenas deixa de contribuir, mas tem ido ativamente na contramão de qualquer solução possível: primeiro, é sentida pela quase totalidade dos alunos como um espaço fechado que não tem relação com a realidade da vida lá fora, e que praticamente não influi nela. Além disso, em termos de relações humanas (considerados aí os alunos, professores, direção, funcionários, e ainda os pais e o resto da comunidade) costuma ser um trágico anti-modelo.

Os conceitos do que chamamos Educação Convivial ou Pedagogia do Convívio vêm se desenvolvendo integralmente de vivências práticas fora de escolas, as quais brotam do sentimento de que uma verdadeira educação é tão vital às pessoas quanto a comida, e não lhes pode ser negada – e por isso, enquanto a escola seguir roubando (sim) o tempo previsto para a educação sem realmente educar, teremos que encontrar outras formas e espaços para celebrar os rituais da educação.

Fique claro, porém, que estas idéias não excluem a escola, e sim têm a esperança de ainda encontrar entrada nesta, vindo a colaborar com a sua total re-criação, indispensável a que ainda venha a ser um lugar capaz de abrigar o sagrado mistério de uma verdadeira educação!

NOSSA TENTATIVA:
AS OFICINAS DE CONHECIMENTO & ARTES

Em nossa abordagem, o espaço onde acontece um processo de educação jamais deve ter “cara de instituição”, e sim de um espaço normal de viver: algo como uma casa. (Mestre Rubem Alves vem dizendo o mesmo com freqüência. Isso é para nós uma feliz confirmação, pois, embora ele não nos conheça, nosso ensaio prático precedeu em vários anos o aparecimento desse seu discurso). Importante: não falamos de simulacros; só cabe o nome de casa a um lugar onde more alguma gente, e ainda bichos e plantas.

Sala de aula? Pode ser a cozinha, a sala, um tapete, às vezes uma rua, uma praça. Uma lousa ou quadro-negro na parede ajuda, é verdade. Equipamento high-tech é confeito: o que conta mesmo é o encontro humano autêntico. (Isso não quer dizer que dispensemos computador e internet: esses são hoje tão indispensáveis quanto um fogão… ou instrumentos musicais!).

Quando se sente que isso vai ajudar, o processo educativo assume a forma de sessões com tempo delimitado (aulas); mas com freqüência assume integralmente a forma do convívio cotidiano – porém de um cotidiano escolhido conscientemente, nunca banal; um cotidiano que é o tempo todo ir atrás de objetivos de vida coerentes com o que se estuda. (Por essa razão às vezes as Oficinas de Conhecimento & Artes nem mesmo são visíveis de imediato: não são um lugar, são um processo, um acontecer).

É à educação celebrada desse modo que damos o nome de Educação Convivial: pelo convívio e para o convívio. Esboçamos a seguir alguns de seus princípios – observando que, embora nosso projeto venha se concentrando nos adolescentes e jovens, estas idéias encontram formas de realização em qualquer faixa de idade.

EDUCAÇÃO CONVIVIAL: O CORPO

Um educador chega a estar fazendo Educação Convivial se sua relação com os jovens é um compromisso de vida, não apenas uma relação de trabalho e muito menos de emprego. Isso se expressa como um envolvimen­to – um envolvimento cúmplice, diríamos – na vida desses jovens, com os interesses e preocupações que já trazem – não para se restringir eternamente a isso, mas para que a ampliação representada pela educação se faça de fato parte da vida – da mesma vida que o jovem já tem, não uma “camada de glacê” – inclusive para que a educação não seja mais uma entre as inúmeras forças contemporâneas que já atuam no sentido do esfacelamento da unidade do indivíduo!

O educador não vem de cima, ajudar (que olhe sua própria vida e admita: “quem sou eu para ajudar?!” ) – mas vem juntar-se a um desafio ou luta em comum.

Com algum tempo chega-se a projetos de realização (isto é, com aplicação real fora do espaço escolar) geralmente brotados do impulso dos próprios jovens (como, no nosso caso, um grupo de teatro, uma banda, a campanha do Reencantamento, a reforma de um galpão). O educador participa dos processos práticos que isso envolve, sem nenhuma restrição a fazer junto se os jovens também o quiserem (diferente de fazer no lugar de), compartilhando seu próprio know-how quando isso  for possível, ajudando na busca de know-how e recursos externos quando for o indicado, e ainda trazendo subsídios culturais que ajudem a inserir essas ações práticas num sentido maior, a tomarem parte no “mar” do conhecimento, da criatividade, da História humana enfim.

EDUCAÇÃO CONVIVIAL: O CERNE

Toda essa informação, teórica e/ou prática, ainda é secundária, porém: o realmente central é que nesse agir conjunto se passem padrões de uma ética do convívio, tanto implícita na atuação quanto explicitada em momentos de reflexão.

Essa ética do convívio inclui, p.ex., o respeito à própria palavra (que se expressa em compromisso); a arte de manter o convívio cordial, respeitoso da dignidade de todo ser humano, mesmo em presença de diferenças de opinião irredutíveis (pluralismo); a compreensão da reciprocidade em todas as relações (que se radica na capacidade de sentir no lugar do outro, e, entre outros modos, se expressa necessariamente na valorização e não-exploração do trabalho do outro); a fundamental economia da comunicação (ou seja, a atenção ao balanço entre o falar [tomar!] e o ouvir [dar!]) etc.

Uma tal ética propicia o desenvolvimento do convívio até o nível de uma arte – que podemos (como Rudolf Steiner) chamar de Arte Social.

De nenhum modo, porém, estamos falando de uma etiqueta (pequena ética), o que levaria apenas ao artificial, não ao verdadeiramente artístico – ou ao estético (palavra que fala de fazer as coisas não por convenção ou obrigação mas com gosto – em todos os usos da expressão, porém um pouco mais no de “prazer” que no de “bom-gosto”…) Para lá do convencional, do medíocre, do mesquinho… somente uma grande ética, que mobilize o espírito humano em sua totalidade, poderá dar nascimento a uma tal Arte.

É fundamental, porém, entender que simplesmente não funciona ensinar “ética pura”. Primeiro, não haverá aceitação de nenhum valor trazido explícita ou implicitamente pelo educador se não se houver atingido antes o já referido sentimento de cumplicidade. 

Segundo, o discurso da ética gerará apenas mais uma lei morta, entulho na mente, a menos que venha a cavalo do próprio dia-a-dia (tanto no momento da ação quanto em reflexão posterior), embora complementarmente também deva vir entretecido nos diferentes conteúdos de informação (a hoje chamada “transversalidade”). (Não é sem importância apontar que narrativas, quer biográficas quer fictícias, são em qualquer idade veículo privilegiado para os dois níveis de conteúdo referidos).

Os conteúdos, portanto, são indispensáveis – não apenas pelo seu valor em si mas também como pretextos para a interação na qual se encarna a vivência-reflexão ética. Porém somente quando a informação se articula, de um modo ou de outro, com os interesses já trazidos pelo jovem, é que ela é capaz de gerar entusiasmo. E sem entusiasmo não há aprendizado, não há criação, desenvolvimento, realização… não há Vida digna desse nome.

NEUTRALIZAR OU APROVEITAR O POTENCIAL MOBILIZADOR?

Finalmente: ao contrário do que afirmam muitos programas, nosso objetivo não é propriamente “integrar o jovem à sociedade” – pois a sociedade como está não merece que o jovem se integre a ela! Em vez disso, tanto o jovem quanto os demais atores sociais – isto é, a sociedade como um todo – devem aceitar estar em processo de transformação, de melhoramento. E, talvez surpreendentemente, justamente o jovem ainda pouco integrado está em posição privilegiada para ser um agente de transformação e de crescimento ético da sociedade.

As razões disso são várias e não cabe aqui sua análise detalhada, mas cabe sim mencionar que, se tal jovem não está integrado, não é porque ele mesmo tenha escolhido se excluir: foi a sociedade que em algum momento o deixou de fora – possivelmente sem se dar conta disso (sem maldade ativa), por simplesmente ser mais fácil ignorar a existência desse jovem enquanto não estiver incomodando.

E é justamente nesse ponto que a sociedade mais precisa ser transformada: em que deixe de ser um sistema onde é admissível deixar de fora (= excluir) e passe a ser o lugar do com-viver – esse fenômeno inviável… se não quando é a própria encarnação da ética… por sua vez essa coisa abstrata e inútil… senão quando encarnada na forma (não há outra!) de convívio são.

Mas… onde iria parar uma sociedade assim? Alguma coisa contra mirar para uma sociedade menos empresa do que festa, com todas as suas partes (numa imagem sugerida por Habermas) celebrando contínua e alegremente umas com as outras os ritos do aprendizado e da invenção?

(…Se, porém, a sociedade não se mostrar disposta a transformar-se nesse ponto, estará demonstrando não querer de fato integrar os jovens, mas apenas neutralizar o risco ou incômodo que neles vê. Tentativa inútil, cabe dizer, pois jamais houve e jamais haverá paz senão como fruto de justiça! Como a sociedade iria ser respeitada por filhos aos quais ela mesma não respeita? Não há medida paliativa que possa substituir a participação plena na herança humana a que esses jovens têm direito – pela nobre e sacratíssima condição de simplesmente serem humanos!)

REFERÊNCIAS TEÓRICAS?

A idéia da Educação Convivial não procede substancialmente de nenhuma leitura e sim da vivência diária, acompanhada de intensa observação e reflexão.  É natural e inevitável, porém, que seja informada por leituras ou se redescubra nelas. Assim, apesar de nosso pequeno contato com muitos deles (e apesar de suas origens teóricas tão díspares!), reconhecemos nela afinidades significativas com aspectos das idéias e propostas de, entre outrosA.S.NeillCarl Rogers,  Domenico de MasiEdgar Morin, Ivan IllichJanusz KorczakJürgen HabermasPaulo FreireRudolf Steiner.

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