Ralf Rickli*
De repente me vem a imagem de meu pai, saído da roça e formado médico depois dos 30, comentando pensativamente aos 50 a sentença que lera em Tolstói: “ser pobre em um país de ricos é uma vergonha – porém ser rico em um país de pobres é um crime…”
Não duvidei: era o óbvio. Mas nunca achei que as receitas tradicionais, nem da direita nem da esquerda, dessem conta da realidade. Professores politicamente avançados também podem ser mortalmente chatos, destruindo nos alunos todo prazer de conhecer – e sabemos quantos desastres tanto o Oeste quanto o Leste impingiram ao meio ambiente. Por isso sempre fui atrás do alternativo: no conhecimento, na agricultura, na educação, na administração…
Nessa busca fui parar na Inglaterra, onde deparei com Judy Hurley (depois Bloomgardener), egressa de quantos movimentos alternativos norte-americanos se possa imaginar: anti-nuclear, feminista, de agricultura orgânica…
Assim que voltei, minha mestra quis conhecer o Brasil. Preparei cuidadosamente uma agenda visitando tudo o que me pareceu alternativo no novo país (pós-abertura Geisel) que eu encontrara. Judy passou zunindo por tudo aquilo e poucos dias depois estava profundamente envolvida com as Comunidades de Base da época (1982) – que me pareciam então de um esquerdismo tão convencional e pouco… “alternativo”…
Diante da minha surpresa, Judy deixou claro entender que uma alternativa que não se referisse à absoluta maioria da população do país não era alternativa nenhuma, era pura imitação de modelos externos. Seu trabalho, na realidade norte-americana, havia sempre sido política de base. A política de base aqui seria outra, de acordo com as urgências locais. (Depois disso Judy coordenou por alguns anos o movimento Abraço, nos EUA, pelo cancelamento da dívida do 3.º Mundo, antes de se assentar como terapeuta de refugiados…)
Revejo o caminho mais uma vez: 1968, eu, com 11 anos, olhando fascinado de longe as cores do movimento hippie… Depois, com 20 e pouco, me engajando quando esse já tinha virado “movimento alternativo”… Pra me contarem, aí pelos 40, que eu era parte do “terceiro setor”: iniciativa da sociedade civil com objetivos sociais.
Hoje não dou conta de ler os inúmeros boletins e anúncios de seminários que me prometem ensinar como cuidar do Terceiro Setor com as ferramentas da Administração de Empresas – ou então como cuidar da Administração de Empresas com ferramentas, digamos, alternativas (p.ex. meditação). Tudo incrível, maravilhoso. E inacessível a quem vem há anos tentando desenvolver, no nível do chão, “sem parentes importantes e vindo do interior”, alternativas reais para jovens que encontram limitações econômicas na sua busca de desenvolvimento humano integral…
Colegas: pelo menos 85% dos brasileiros, 145 milhões, “encontram limitações econômicas nas sua busca de desenvolvimento humano integral”. Sim, não menos – se isso inclui, p.ex., um bom psicoterapeuta, um ensino inspirador, um pão integral sem resíduos tóxicos… um bom seminário sobre cooperação.
E as alternativas maravilhosas que cintilam na Internet, atingem a quantos deles mesmo? Ou, mesmo que pretendam, quanto do investido chega ao nível do chão, quanto fica pelo caminho remunerando a tão decantada profissionalização do terceiro setor?
A qualidade dos serviços sociais profissionalizados agora encanta nossa sociedade esclarecida – na forma de balanços e relatórios bem escritos! Quem vai lá conviver com os atendidos alguns dias e sentir a qualidade do conteúdo do trabalho?
Os meios adoram tomar o lugar dos fins, e o acessório custa várias vezes o essencial.
Pois já o “investimento” requerido pelos cursos que prometem ensinar uma pessoa a gerir adequadamente a relação custo-benefício nas iniciativas sociais, esse investimento é com freqüência um múltiplo qualquer do valor com que a iniciativa, de um jeito ou de outro, fazia mensalmente o milagre de atender umas dezenas de crianças, ou algo assim. Quanto altruísmo da parte de profissionais que deverão abrir mão da maior parte do retorno desse investimento! Ou… ?
Pois é, uma suspeita chata insiste em zunir em volta da minha cabeça: essa tal profissionalização do terceiro setor não seria apenas um mercado de trabalho alternativo vislumbrado pelos profissionais da área econômico-administrativa, pressionados demais no seu próprio setor – porém menos preocupados com os efeitos sociais últimos de sua atuação que com o preço da banana no interior da Nova Guiné?
Mas não, não, imagine se uma coisa dessas seria possível, longe de mim tal interpretação maldosa!
De um modo ou de outro, fica cada vez mais difícil, a simples cidadãos que quiseram tomar uma iniciativa social, conseguir realizar alguma coisa, ou mesmo sobreviver, nesse mundo tão profissional! Não dá mais pra ser cooperativo a não ser competitivamente!
Mas como sempre houve gente estranha nesse mundo… ainda estamos aqui… sapo cururu… na beira do rio… à espera de colaboração… da cessão de uso de bens, como sempre cedemos… da doação de serviços, como sempre doamos… ou de sua execução por remuneração simbólica, como a que qualquer professor de escola pública recebe mês após mês… fazendo de um modo ou de outro nossos pequenos milagres… neste país exótico aqui embaixo, onde ainda se anda com pés no chão.
(Obs.: será que alguém mais anda pensando nessas coisas? Fiquei curioso!)