CONVITE
Aqui no Brasil muitos pensam que a África, além de seus fabulosos bichos, tem apenas povos “selvagens”. Volta e meia se vê, ainda hoje, algum desenho de negros com o cabelo amarrado num ossinho, cozinhando um branco num caldeirão.
Isso é uma fantasia, e a realidade é bem diferente. Hoje se sabe que a África é mãe de boa parte da civilização deste mundo – só que no Brasil quase não se fala disso. Somos o país com a segunda maior população de origem africana no mundo (só menor que a da Nigéria), mas essa população quase não tem chance de conhecer a História de seus antepassados e de sua participação na cultura mundial.Por isso é que queremos convidar vocês a uma viagem imaginária por uma História real. Não vamos ficar falando dos leões e girafas, que todo mundo conhece, e nem mesmo da vida tribal, que existe lá como em toda parte do mundo. Queremos que vocês visitem conosco o lado menos conhecido da África, que é o das suas civilizações. Pois esse conhecimento pode nos ajudar a fazer do próprio Brasil um lugar melhor.Como? Por quê? Só lendo pra ver!
PS: Se você quiser se dedicar ao estudo dessa História em maior profundidade, ou for um professor que precisa de dados adicionais, encontrará alguns comentários de seu interesse no fim de cada capítulo, bem como no Apêndice final, que inclui ainda bibliografia, índice de palavras-chave e sumário dos temas de cada capítulo. Não deixe também de ver os mapas e o gráfico da “profundidade de viagem no tempo”!
8: O Pavilhão do Imperador em Cumbi Saleh
Meteram-se na pequena multidão formada pela caravana e outras pessoas que iam e vinham do pavilhão de audiências. O burburinho lembrava festa em cidade do interior, como rodeio ou cavalhada, ainda mais que volta e meia passavam cavalos ricamente adornados, com cavaleiros em cotas de malha, isto é: blusões-armadura, com a malha cheia de anéis de metal. Acontece que aqui não eram fantasias como nas cavalhadas: estes eram cavaleiros medievais mesmo.
Aproximaram-se da entrada. O rufar de um grande tambor, feito de um tronco escavado, anunciava que a cerimônia estava pra começar. As pessoas se apertavam como em porta de igreja, entre afobadas e solenes. Atravessaram os portões por entre duas filas de imponentes cães de raça; Túlio reparou nas coleiras:
– Olhe só que coleiras, Idriss: parecem jóias!
– Parecem, não, Túlio: são jóias. Trabalhadas em ouro e prata.
– Cachorros com coleiras de ouro, que loucura!…
Logo tinham diante de si o amplo espaço do pavilhão, porém de início não viram nada, pois passavam de luz intensa para a penumbra. Túlio estacou, a cabeça e os olhos vagando, desorientados. Aos poucos as cores e brilhos começaram a se encaixar, como num quebra-cabeças: ao fundo estava um trono, vazio; no chão, aos pés do trono, sentava-se um grupo de homens em roupas finas porém sóbrias.
– São os vizires, ou ministros – cochichou Idriss. Bem ao pé do trono está o governador da cidade.
Túlio olhou em torno mais uma vez. O espaço estava delimitado, em toda a volta, pelos cavalos do rei, perfilados, esbanjando ouro em seus arreios e adornos.
Ousaram mais alguns passos, tentando enxergar melhor, e deram com um bloco de pessoas em pé, logo à direita do trono. Eram todos jovens, rapazes e moças, postados com uma solenidade que fez Túlio gelar. Não de medo, porém: era mais um arrepio de… beleza. Parecia um filme; só que aqui… pela primeira vez… não só Túlio se via dentro do filme, como também os “atores” não eram diferentes dele, mas tinham pele, traços, cabelo como os seus, de seus vizinhos, seus irmãos – e isso com uma presença e imponência que, sinceramente, Túlio jamais havia sonhado que os seus pudessem ousar.
– São os jovens nobres do reino – sussurrou Idrissa de novo. – Os filhos dos príncipes.
Os olhos de nosso amigo foram avançando mais e mais, experimentando passear por aqueles rostos. As roupas eram belíssimas, inclusive por não cobrirem demais – pois que tecido poderia competir com a própria beleza dos corpos jovens? Ainda maior impressão causavam os penteados – trançados com fios de ouro, pra variar…
Os jovens conversavam discretamente enquanto a audiência não começava. Às vezes o olhar de algum percebia o de Túlio com simpatia, e este se imaginava lá no meio, fazendo amizade e descobrindo como era a vida destes príncipes…
De repente seu olhar cruzou o de uma jovem princesa, e esta deixou escapar um sorriso luminoso e leve como borboleta. Aí sim é que Túlio sentiu o chão fugir dos pés. Quando viu, já se havia apoiado no ombro de Idriss, apelando:
– Me segura!
– Ué, Túlio, o que foi?…
Bem nesse instante o tambor soou de novo, e com mais força, anunciando a entrada do imperador. Os dez pagens atrás do trono levantaram seus escudos e espadas com empunhaduras de ouro, e aí…
Aí, infelizmente, não puderam ver muita coisa mais. Eram tempos em que não se podia olhar diretamente ao soberano de um grande império. Todos os que eram recebidos em audiência se prostraram, e aquele que ia falar baixava o rosto até o chão. De sua parte, o imperador falava em voz baixa ao ouvido de um porta-voz, e era este quem repetia alto as palavras para todos. Túlio e Idrissa ainda puderam espiar um pouco porque não estavam direto diante do trono, mas, naturalmente, por algum tempo não puderam conversar.
.
Por sorte a audiência à delegação da caravana foi rápida, pois o rei tinha outras delegações a receber, além de súditos que traziam questões ao seu julgamento. Ao sair, os ouros e pompas lá de dentro ainda faiscavam nos olhos de Túlio, que não continha o espanto:
– Mas… mas… todo esse ouro, Idriss, como é possível! Aqui, na África, tão pobre…
– Aí é que está, Túlio, você começa a desconfiar: não é sempre que a África foi pobre, não.
… Veja – continuou Idriss – até os europeus descobrirem a América, grande parte do ouro em circulação na Europa terá saído daqui, do Sudão. Como passa por muitos intermediários, eles nem sabem que é da África.
– Ué, aqui não é Gana? O Sudão não é lá perto do Egito?
3: O Espadachim do Violino e o Rei do Ragtime
– Veja, Idriss, quem é essa figura exótica ali? Parece um Mozart mulato, de cabeleira branca, luva e espada…
– Ah, o Cavaleiro de Saint-Georges! É mesmo uma espécie de Mozart: esse é um grupo de músicos clássicos.
– Músicos clássicos, aqui? Parece ainda mais estranho que o que eu já vi!
– É verdade que esse grupo não tem muitos nomes famosos. Nos anos da escravidão havia orquestras inteiras formadas de escravos, inclusive nos remotos sertões do Brasil!, mas a maior parte desses músicos não deixou nome nem fama.
… No campo da música, negros e mestiços tiveram muito mais impacto depois que puderam usar livremente o jeito africano de fazer música, isto é: com muita improvisação, um jeito mais redondo de atacar o ritmo etc. Aí surgiram o blues, o jazz, o rock, a música popular brasileira e a do Caribe, etc., numa intensa renovação que atingiu também a música erudita. No fim das contas, é impossível imaginar a música e toda a arte do século XX sem a imensa influência negra por todos os lados.
… Mas hoje nem vou lhe apresentar músicos populares e de jazz, porque esses não é difícil conhecer. Queremos mostrar agora os lados menos conhecidos da África e de sua descendência.
– Certo. Aquele então é um grupo de músicos clássicos. Aquele outro mestiço ao lado do Cavaleiro de Saint-Georges, vestido de padre é…
– José Maurício, compositor no Rio de Janeiro na época de D. João VI e D. Pedro I. Não se conhece compositor maior que ele no seu país antes de 1850.
– E aquele, meio quieto, de roupas um pouco menos antigas que as do Cavaleiro?
– Sabe-se pouco dele. Era exímio violinista e viajava pela Europa. Fez amizade com Beethoven, que dedicou a ele sua maior sonata pra violino. Depois, não se sabe se por ter rompido a amizade ou por alguma outra razão, re-dedicou a sonata ao violinista francês Kreutzer.
– E o Cavaleiro de Saint-Georges? Quem é essa figura, afinal?
– Uma figura de romance, sem dúvida. Não vai achar ruim falar de sua vida. Vamos lá?
– Vamos.
– Messieur le Chevalier, s’il vous plait…, não se incomodaria de contar um pouco de sua vida a meu amigo, um futuro professor brasileiro?
– Mas como não! Eu ia mesmo começar a contar ao amigo americano aqui, Mister…
– Joplin. Scott Joplin.
– Meu pai era um alto funcionário francês em Guadalupe, uma ilha da América Central. Minha mãe, Nanon, uma das mulheres mais belas da ilha. É claro que ela sendo negra não deve ter sido um romance sem problemas! De qualquer modo, nasci em Guadalupe em 1739. Felizmente, ao contrário de tantos outros casos, desde cedo meu pai quis me garantir a melhor das educações.
... Cresci portanto na exuberância do sol e das praias do mar do Caribe, em Guadalupe e em São Domingos. Ainda em criança me destaquei, ainda não como músico mas em todo tipo de esportes, acima de tudo na esgrima: aos 15 anos ninguém dessas ilhas me batia no manejo da espada. Foi aí que parti pra Paris, meu lar até o fim da vida.
46: O Pesadelo
Estou vendo uma mulher, toda envolta em panos africanos. Está numa casa simples, mas bem arrumada. Ah, essa mulher é a Mãe! Tem uma mulher branca chegando, vestida como nas cortes européias, como naquele filme “Ligações Perigosas”: sombrinha, vestido armado até os pés, decote avançado, pérolas. A Mãe reage, ríspida:
– O que é que você quer aqui?
– Ora! Negociar…
– Eu já conheço os seus negócios! Não está contente de ter se instalado no meu portão, subornado meus fornecedores, roubado toda minha freguesia, acabado com o negócio que levei milênios pra construir?…
– Ora, é a livre concorrência, minha filha; a lei do mais forte; a lei da selva.
– De selvas aqui entendo eu! E sei que lá nunca foi assim. Na selva pra cada gesto de concorrência há cinco de colaboração. Mas… o que é que você quer?
– Negociar, já disse.
– Negociar o quê? Não está contente de ter deixado eu e os meus filhos à beira da fome?
– Pois justamente! Estou preocupada com você. Deve ser um trabalhão dar de comer a tantos filhos, não? Eu posso dar um jeito. Você não está precisando de dinheiro? Pois eu preciso de mão-de-obra; não dou conta das minhas plantações lá no Brasil, em Cuba, na Virgínia… Vende seus filhos, vende?
– O quê??? Você tem coragem de vir aqui na minha casa pra… … Fora, fora! Fora daqui!
– Ora, comadre, não vá dizer que na sua casa nunca houve escravos!
– Houve, sim, como na sua. Uma meia dúzia aqui, uma meia dúzia ali, reforçando o trabalho. Mas meu povo sempre trabalhou. Nunca tive cidades gloriosas em que os cidadãos conversavam o dia inteiro às custas de quatro escravos cada um…
– Ora, vá, comadre, eu pago bem!… Olhe o aperto que você está passando.
– E não me chame de comadre! Eu sei, eu sei muito bem como você costuma tratar quem lhe cai nas mãos. Vai, vai, fora daqui!
– Está bem, comadre. Mas espere que eu volto, sim? Eu não desisto tão fácil…
Parece que a dona vai embora; já vai pro porto… Mas não, ela não vai pro navio. Tem uns barracos ali, um pessoal bebendo. São africanos. O que ela vai fazer lá, toda arrumada?
– Decaídos, despeitados, criminosos, marginais… cheguei!
– Viva!!!
Credo, de repente a dona tão elegante ficou toda vulgar… De cachaça, charuto e tudo! Entra com os outros num jogo de cartas…
– Ô… escuta, ô Chacal… Você não acha que essa mãe, essa madrasta de vocês está meio gagá?
– Se eu acho? Eu tenho certeza! Olha só: você chega aqui no porto, traz pra gente o que há de mais moderno no mundo, e ela… nem tchum. Fica insistindo em viver lá do jeito dela, de séculos atrás…
– Viva a dona Oropa!
– VIVAAAA!!!
– Deixa disso, pessoal… Mas, escuta, Chacal…
– Fala, Oropinha!
– E que tal se eu ajudasse… Se eu desse uma força pra vocês… tomarem conta logo dessa casa! Você tem razão, são outros tempos! Ficar parado não dá…
– É de pensar…
Tinha um sujeito quieto, enferruscado, que de repente levantou:
– Eu topo tudo! Depois que a velha pôs no trono aquele idiota do meu irmão… Ah, eu ainda quero ter o prazer de tirar ele de lá na ponta da lança, triturar aqueles ossos…
– Mas que lança, que nada, ô Crocodilo! Eu tenho coisa muito melhor…
– ???
– Vocês ainda não viram as armas da titia, não? As belezinhas?… Pois é!
– É, mas isso nunca foi pra nós…
– Mas por que não!? Vocês querem testar minhas belezinhas, querem? É fácil!
… Olha, o negócio é o seguinte: eu estou precisando de-ses-pe-ra-da-men-te de braços pras minhas plantações. A velha aí está cheia de filhos e não quer colaborar. Eu passo pra vocês umas arminhas… Vocês tomam conta da casa da velhinha… e me vendem uns escravinhos, que tal? E ainda entra grana na jogada!
– Ôba!!!
– Mas tem uma coisa: não tem irmão, não tem primo, não tem sobrinho, não tem mãe: é tudo mercadoria. Quem for sentimental que caia fora. Quem está aqui é pra negociar.
Entreolharam-se. Se fez um certo silêncio na sala.
– Mas não é que precise ser assim… Só quando for o caso, é claro. Olha, a gente faz o seguinte: um de vocês vai no reino de lá e avisa que os daqui estão comprando armas. Aí os de lá também vêm e compram… Todo mundo vai guerrear. Todo mundo fazendo prisioneiros de todo mundo! Aí nós aqui… olhando de fora… vamos lá e compramos. Prisioneiros de um, prisioneiros de outro, tanto faz. Caiu na rede é peixe!
– É isso aí. Você tem razão. Isso aqui tem que mudar.
– Então vocês topam?
– Eu topo!
– Eu também!
– E eu!
– É pra já!
O que é isso agora? Tropel, poeira, fumaça!… Credo, é a casa da Mãe. Saqueada, incendiada. Olha ela lá, cambaleando, toda ensangüentada, entre as bananeiras do quintal… E agora, o que vem de lá? Uma fileira enorme de gente amarrada com correntes, tropeçando, ensangüentados… E outra, e outra… De todos os lados… A poeira e a fumaça tomam conta de tudo, do continente inteiro…
Os acorrentados estão chegando ao porto… No porto tem duas cadeiras altas… dois tronos. Um de ferro e um de marfim. O cara do trono de ferro – não sei por quê, não consigo dizer “o rei” – está recebendo dinheiro da dona elegante. Do lado tem um sujeito com um chicote na mão. Ele dirige a corrente humana pra um corredor.
Credo, estão sendo marcados com ferro em brasa, como gado!, e ao mesmo tempo o cara do trono de marfim borrifa água e vai falando… Não pode ser, é um bispo, e vai falando as palavras do batismo!!! O cara do trono de ferro parece possesso, urra, pragueja… Ele é… o Crocodilo!, e o cara do chicote é o Chacal!
* * *
Nesse momento o Babá fez um gesto e – puff! – a visão se desfez no ar. Túlio ficou parado, aturdido, sem saber pra onde olhar.
– Chega! É mais que bastante – disse Idriss.
Túlio estava paralisado. Queria falar com os outros, reintegrar-se à turma, mas o impacto de ter visto aquilo tudo era muito mais que o de apenas ter ouvido. Sentiu que não ia agüentar: cambaleou pra fora do grupo, foi se torcendo, torcendo… até sentar abraçando os joelhos… e aí começou a chorar.
Desandou. Não lembrava de ter chorado assim desde pequeninho, mas tinha a sensação de que era chorar ou morrer. Os outros entenderam e deixaram passar algum tempo, quietos.
Enquanto isso o Babá fez um sinal ao menino que o havia chamado, que saiu e voltou com um pote de água fresquinha que foi oferecendo de um em um. Cristiano ajudava Túlio a se levantar. Quando chegou sua vez nosso amigo bebeu, lavou o rosto e, parecendo sentir que isso não bastava, fez mais: despejou a água sobre a cabeça. Sacudiu-se todo e anunciou:
– Estou pronto.
– Pois então vamos! – disse Idriss. – Não vamos ficar remoendo as coisas feias quando há tanta coisa bonita pra ver – no passado, no presente e no futuro! – Traduziu sua fala para o Babá, que expressou sua concordância e os abençoou para a continuação da viagem. Num instante estavam de novo no tapete e ganharam vôo.
O tapete estava em alta velocidade. Não demorou muito e viram os prédios brancos de Abidjan reluzindo ao sol. Também ela fazia frente pra uma laguna e pro mar.
– Abidjan é menor que Lagos, mas começa a fazer mais barulho.
– Como?!
– Agito, efervescência. É o lugar onde se juntam os yuppies, o lugar das discotecas e desfiles de moda… Se a África fosse São Paulo, Abidjan seria os “Jardins”.
… É claro que não é só isso. Dos que vêm de toda a África Ocidental em busca de uma “terra prometida”, a maior parte não consegue e vai engrossar os subúrbios…
– Conhecemos essa história, lá do Brasil…
– Mas, enfim, estamos aqui. No local escolhido pra encerrar o nosso congresso.
Assim como haviam decolado em Dakar, pousaram no heliporto de um grande hotel. Desceram pelo elevador – era estranho, depois de tanto tempo no passado! – até o andar do Centro de Convenções. Lá estava o burburinho típico, lá estavam as jovens bem arrumadas circulando apressadamente a serviço (“Onde andará Ayoká?”, Túlio pensou). Enfim, o de sempre das convenções.
Tudo ainda parecia longe de começar. Túlio deu uns passos auditório adentro. No palco, por cima da mesa, o letreiro dourado: III Grande Congresso Pan-Africano Transtemporal. Estava ali, sem saber bem por quê, quando alguém chamou:
– Túlio do Espírito Santo?
– Hã?
49: O Poeta Emparedado
Voltou-se. Ao seu lado, alguém que já tinha visto mas não reconheceu no primeiro momento. Aí lembrou:
– Ah sim! O poeta Cruz e Souza!
– Pode me chamar de João, por favor!
… Fiquei querendo conversar com você desde o dia da abertura. Naquela roda de escritores, lembra?
– Bem, só posso dizer que é uma honra, mas… desculpe, não consigo imaginar por quê.
– Sabe, quando você chegou na roda foi como se eu tivesse voltado no tempo… no meu tempo pessoal, entende?, e me olhado no espelho. Eu me enxerguei rapaz, nos tempos do Ateneu Provincial em Santa Catarina, nas aulas do professor Fritz Müller, amigo de Darwin…
… Que tempo fascinante: o mundo tinha tanta coisa a se descobrir!… Mas depois a vida foi ficando tão tão tão amarga…
– Mas por quê?
– Bem, só por exemplo: fui nomeado promotor público de uma cidade, e a população nem me deixou assumir. Depois, era aquela história: “Neguinho metido a besta! Pensa que é in-te-lec-tual, é?”, “Artista, você? Desde quando selvagem dá artista…”
– Ora, mas a gente não pode dar bola pra essas ignorâncias, não é?
– Tem razão… mas você mesmo sabe que não é fácil. Imagine então pra quem nasceu em 1862, em pleno tempo da escravidão!
… Com séculos de destruição, na África era o momento do fundo do poço, e também lá no Brasil tinham dificultado ao máximo a retransmissão da nossa cultura. Tudo contribuía pra fazer acreditar no que eles diziam, que tínhamos sempre sido ignorantes e incapazes.
… Veja o meu caso: naquele momento, quê chance de me desenvolver eu teria tido só com meus pais, ambos escravos? Se o marechal Souza e a mulher não tivessem resolvido fazer de mim o filho que não tinham, se não tivessem me mandado pra uma escola toda de brancos, o mundo estaria escondido de mim.
… Assim o saber, a cultura, a luz, pareciam ser mesmo propriedade dos brancos. E já que eu era inteligente, e artista, por um tempo imaginei que meu corpo negro e qualquer herança africana só podiam ser um engano, um estorvo contra o qual era preciso lutar. Palavras como alvo, claro, branco lotavam os meus poemas.
… Mas… e o que adiantava? Mesmo eu virando branco por dentro os outros continuavam a me ver por fora e a me tratar como negro. Percebi que o caminho não era por aí, mas… que outro podia ser, então? Não via caminho pra nenhum lado, tanto que num escrito me chamei de “O Emparedado”. Assumir a negritude, naqueles tempos, era fora de cogitação.
– Mas por quê?
– Toda a “ciência” da época acreditava ter provado que os negros eram seres inferiores. Justamente porque eu lia muitas línguas podia saber das conclusões deles em primeira mão. “Provavam” que não éramos membros da espécie humana, e houve até um “cientista” que nos colocou abaixo de certos macacos na escala evolutiva.
… Quanto à África, diziam, não passava de um amontoado de horrores. Um ano antes da minha morte os ingleses entraram em Benin e fizeram o maior estardalhaço com a história de um rei que chafurdava em sangue…
… É de estranhar que eu chegasse a escrever palavras assim sobre a nossa mãezinha, que eu nem conhecia?
- Artista! pode lá isso ser se tu és d’África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia!Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região desolada (…), Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada África grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal; dessa África dos Suplícios, sobre cuja cabeça nirvanizada pelo desprezo do mundo Deus arrojou toda a peste letal e tenebrosa das maldições eternas!
– Nossa! As palavras têm uma força fascinante, mas o que estão dizendo é horrível!
– Terrível mesmo era viver no dia a dia carregando essas tensões e contradições. Já vivendo no Rio de Janeiro, eu andava o tempo todo com três pedras na mão, achando que todos iam me atacar, fosse verdade ou não. Não é de estranhar que eu tenha ido ficando cada vez mais isolado… Ganhando como modestíssimo empregado da Central do Brasil, no Rio insalubre da época, e gastando toda minha energia na criação literária, também não é de estranhar ter morrido de tuberculose aos 36 anos, mesmo sem ser o típico boêmio.
– Que coisa!
– Pois é. E estou convencido de que se eu tivesse podido saber da verdadeira história do nosso povo, isso tudo tinha sido diferente.
– Você acha?
– Acho. E é aí que entra você.