Carta aos Homens Honestos

A carta original, autêntica, foi publicada por Kurt GAUGER no livro Dämon-Stadt, Düsseldorf, 1957. Foi adaptada
para as condições brasileiras atuais
(e para uma performance teatral)
por Ralf RICKLI (2001/2003), a partir da versão de 1958 de Huberto ROHDEN
(em Novos Rumos para a Educação, S.Paulo, Martin Claret, 1997).
CARTA DE UM JOVEM PRESIDIÁRIO
AOS HOMENS HONESTOS
É útil saber que o autor da carta
foi um representante da chamada ‘Juventude Transviada’ dos anos 50 – crescida enquanto os pais estavam integralmente dedicados à reconstrução material da Europa após a guerra – porém a pertinência das suas colocações ultrapassa de longe essa situação específica. O primeiro parágrafo foi acrescentado ao texto original para sugerir essa idéia em performances teatrais.
Tudo bem, agora vocês me têm preso aqui – mas vocês não venceram. Nem a mim, nem à minha geração, nem a todos como eu, em todos os tempos. Escrevo da prisão, na Alemanha, por volta de 1950 – mas podia ser dos Estados Unidos, da Itália, da Rússia… do Brasil do ano 2000.

Vocês nos prendem porque somos fortes demais pra vocês. Fortes no mal. Mas vocês é que são fracos – fracos no bem. Condenam uma geração contra a qual vocês mesmos pecaram – por serem fracos.

Nós demos a vocês 20 anos para nos fazerem fortes – fortes no amor, fortes na boa vontade –, mas vocês nos fizeram fortes no mal. Porque são fracos no bem.

Vocês não nos mostraram nenhum caminho que tivesse sentido, porque vocês mesmos não conhecem esse caminho – e não trataram de procurar. Porque são fracos.

Algumas pessoas têm interpretado este trecho como comprovação de que as crianças e jovens vem sendo prejudicados pelo  excesso de liberdade. Nós da Trópis não concordamos. Nós o entendemos, isso sim, como crítica à falta de coerência e de critérios confiáveis por parte dos pais, bem como à falta de atenção humana autêntica, e à tentativa de substituí-la por acesso ao consumo. Havia coisas que era preciso proibir? O “não” de vocês era vacilante e inseguro. Nós demos uns gritos e vocês já retiraram o “não”, disseram “sim, sim” – para poupar os seus nervos fracos. E chamaram a isso de “amor”.

Por serem fracos, vocês compravam de nós o seu sossego. Davam dinheiro: “vai, vai jogar no fliperama, vai tomar sorvete!” Mas com isso não faziam nenhum favor a nós, e sim à sua própria comodidade – porque são fracos. Fracos de amor, fracos de paciência, fracos de esperança, fracos de fé.

O texto original fala de ‘quantos estames tem uma flor, e a vida das raposas’. Talvez elementos como esses encontrassem destaque na educação alemã pela tradição de ‘História Natural’ e Naturphilosophie desse país. Substituímos por temas que costumam ser presentes – e atormentadores – nas nossas aulas de Ensino Médio. É importante porém não deixar de preceber a advertência: conteúdos ecológica e biologicamente fortes não dão garantia de o jovem sentir-se atendido em suas necessidades humanas (psicológicas, psicossociais) mais profundas! Nós somos fortes no mal, mas de alma temos só a metade da idade do nosso corpo. Fazemos zoeira para não ter de chorar por tudo o que vocês deixaram de nos ensinar. 

Sabemos ler e contar. Aprendemos logaritmos, as equações da velocidade, os retículos endoplasmáticos. Às vezes até aprendemos a ficar quietos nas carteiras da escola e levantar o dedo para falar coisas sobre os logaritmos…

… mas a enfrentar a vida vocês não nos ensinaram.

E aí tem Deus. Deus! Até estaríamos dispostos a acreditar em Deus, num Deus infinitamente forte que compreendesse tudo e que esperasse que nós fôssemos bons – mas vocês não nos mostraram nem um único homem que fosse bom pelo fato de acreditar em Deus. 

O que vocês fizeram foi ganhar dinheiro com serviços religiosos e ficar repetindo os mesmos velhos versículos e orações.

E a polícia. Senhor Policial, por favor: dá pra deixar o cassetete e a pistola de lado um instante, e responder o que nos interessa? É verdade que o senhor ama a ordem pública pela qual trabalha? Ou será que o senhor não aspira apenas ao seu salário e à sua aposentadoria?

E o Senhor Ministro! Ministro, mostre-nos se o senhor é forte como homem! Quantas boas obras o senhor faz cristãmente, sem publicidade?

Consideramos o parágrafo iniciado por ’em vez de nos ameaçarem…’ a real chave de todo o texto – muito mais que a alegada  ‘falta de limites’. Mais limites declarados verbalmente, porém não demonstrados com a vida de modo autêntico e coerente, não seriam capazes de melhorar em nada a situação. Será que nós não somos as caricaturas da sua existência toda feita de mentiras?

Nós somos desordeiros públicos e fazemos muito barulho. Já vocês, lutam um contra o outro si-len-cio-sa-mente. Se estrangulam comercialmente e armam as maiores intrigas para conquistarem posições mais rendosas.

Em vez de nos ameaçarem com bastões de borracha nos coloquem frente a frente com homens de verdade, que nos mostrem qual é o caminho certo não com palavras, mas com a vida.

O original diz  ‘vão cuidar dos negros da África’, com certeza referência a Albert Schweitzer, musicólogo e organista que depois se dedicou à filosofia, e através dessa resolveu estudar medicina e criar um hospital nas selvas da África. Ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1953. Mas, ai!, vocês são fracos no bem. Os que são fortes no bem vão para o mato trabalhar pelos selvagens… porque desprezam vocês, do mesmo modo como nós desprezamos. Pois vocês são fracos no bem, e nós, fortes no mal.

Mas como esses fracos estão armados de pistolas, agora é rezar, minha mãe!

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