Trópis iniciativas socio-culturais
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QUEM AVISA AMIGO É
Carta aberta ao Presidente que jogou fora a chance
de ser o primeiro estadista do 3.o Milênio
Começo por esclarecer que não sou ligado a nenhum partido, Sr. Presidente. Sou apenas um cidadão brasileiro de 43 anos, classe média, que gastou todos os seus (modestos) recursos dando aulas a jovens da periferia de São Paulo sem que ninguém lhe pague para isso, por paixão e fé no povo brasileiro.
Dia 22 fui “sentir a multidão” no show de Caetano Veloso e Dulce Pontes. Acostumado a esses shows no Parque Ibirapuera, estranhei que houvesse tanta tensão no ar. Pessoas pareciam a um passo de brigar por qualquer coisa – e de fato alguma latas e garrafas plásticas voaram, além de gritos. Mesmo gostando da música, havia um mal-estar difuso pelos rostos. Era evidente que a maior parte das pessoas queria ver um show, mas não queria que pensassem que estavam comemorando os 500 anos. “Comemorar o quê?”, foi a pergunta da semana, nos jornais e nas ruas.
Sou dos que acham que era preciso, sim, comemorar de alguma forma. Mas seria estúpido dizer “a multidão está errada”. Bem mais inteligente é tentar entender a razão dos seus sentimentos. O senhor, como sociólogo, entende essas coisas.
Observei, então, que nos momentos em que a música era claramente afro-brasileira (no show e antes, com os Meninos do Morumbi) havia grande entusiasmo na platéia. Identificação, mesmo se tratando de brancos. Via diante de mim um povo, com uma linguagem em comum.. Já diante da cantora portuguesa, mesmo gostando, as pessoas pareciam não querer gostar. O mesmo sentimento que se encontrava, dentro e fora do parque, a respeito das outras celebrações, inclusive as de Porto Seguro.
Pensei muito no que teria feito a diferença – isto é: o que teria feito as pessoas sentirem 22 de abril como uma festa sua. E cheguei à conclusão de que só existia UMA possibilidade: a de que o senhor, Presidente, houvesse convidado um ou mais representantes dos povos indígenas, bem como um ou mais representantes da comunidade negra, a estarem junto com o senhor em todos os eventos, com tratamento igual ao dado aos representantes de Portugal. E não como jogo-de-cena, e sim de fato ouvindo-os e convivendo com eles.
Iam lhe chamar de populista ou demagogo? Claro que iam. Por despeito. Pois isso teria tido a grandeza de um verdadeiro gesto de estadista. Estaria, além disso, afinado coma face mais avançada do “espírito do tempo”, de modo que o faria de fato o primeiro estadista notável do novo milênio. A diferença não seria só para o senhor, mas isso, nesse momento, teria restaurado no povo brasileiro a capacidade de sentir-se uma nação – sentimento que, digam o que disserem, atualmente não existe entre nós.
Não se diga que isso obrigaria a dividir o palanque com representantes oficiais das mulheres, sem-terras, homossexuais etc., pois o senhor sabe que, aqui, não estou falando de “minorias” ou de “excluídos”, e sim dos grandes constituintes estruturais deste povo em termos étnicos, culturais. Poderia ter sido uma celebração do encontro, onde todos são sujeitos. Foi mais uma vez celebração do “descobrimento”, onde um é sujeito e os outros são objetos – ou seja, do milenar expansionismo cultural indo-europeu sobre o mundo. Em seu mal-estar o povo revela compreendê-lo, embora lhe tenha sido negada informação histórica para entendê-lo com plena consciência.
Não, não falo de “virarmos índios” voltando a formas de vida do passado. Falo de tratar com o devido respeito componentes étnicos massivos, absolutamente presentes e nada minoritários, que continuam tendo sua própria e complexa evolução cultural no anonimato e servidão. Conheci um faxineiro que poderia dar aula de mitologia universal e leitura de símbolos a doutores da USP graças a caminhos de formação “subterrâneos” – mas os doutores com certeza o olhariam como curioso objeto de estudo, e não como interlocutor de igual dignidade – a única coisa que faria deles, doutores, igualmente dignos frente ao olhar da História.
Confesso que eu mesmo só atinei com a chave da festa no próprio dia 22 – mas o senhor é que é o Presidente, com função de representar este povo inteiro – e, convenhamos, na verdade isso era o óbvio. O senhor preferiu, no entanto e mais uma vez, delegar as escolhas a outros, deixando para manifestar sua eventual discordância com uma burocrática demissão depois dos fatos.
E não só: preferiu deixar que quaisquer clamores fossem enfrentados com os mesmos métodos que na minha infância e juventude vi usados pelo regime militar. O senhor e amigos têm alegado o fato de terem sido vítimas desse regime, vociferando sua tradição de lutas pela liberdade, como salvo-conduto para fazer qualquer coisa agora. Não cola, Presidente. Os atos de um homem na sua posição são julgados pelo que são em si, no presente, não por sua história pessoal passada.
Os índios se deram o trabalho de marchar milhares de quilômetros até Porto Seguro porque eram os únicos que estavam levando esta data realmente a sério, Presidente. Não é o momento de entrar no mérito dos outros movimentos envolvidos, mas o senhor sabe que ninguém iria até lá só pelo gosto de ser do contra e encrenqueiro. Fascistas, eles? Não creio que quisessem calar a voz de ninguém, apenas que a deles também estivesse presente, expressão de mais uma parte de um tecido social vasto, complexo – e real.
Não sabem conviver com a discordância? Ora, Presidente, parece que aí há uma pequena inversão! No mais, faz diferença quando um interlocutor está no poder e sua palavra é praticamente lei, e o outro tem que fazer literalmente horrores para que sua opinião apareça, com freqüência adulterada, em umas poucas linhas de jornal.
O senhor diz que a discordância tem que se dar nas formas da lei e da ordem. Claro que assim devia ser – se a lei e ordem instituídas de fato representassem a todos. O senhor, como cientista social, sabe que não é assim. Sabe que as regras presentes foram feitas de modo a garantir que os interesses de algumas classes e forças sociais sejam hiper-representados, e que, seguindo essas regras, os interesses da maioria nunca conseguem se fazer valer. O senhor sabe que nosso legal não é expressão do legítimo – mas agora que está do lado de lá parece ter preferido esquecê-lo.
Enfim, este é o aviso: não há serviço de informação que dê conta de levar adentro dos palácios de Brasília o cheiro da inquietação que está nas ruas, Presidente. Como o senhor sabe, o povo brasileiro detesta a desordem aberta, a ponto de parecer passivo. Mas ninguém agüenta mais sentir que estamos mal e mal sobrevivendo, em meio a desemprego e limitações atrozes, a dores reais, para “estabilizar um país”, e esse mesmo “país” não leva minimamente a sério nossa voz nem nossa existência. Ao empresário o sacrifício atinge como uma empresa fechada, uma casa ou carro a menos. Aqui mais embaixo, Presidente, são milhões de pernas e estômagos doendo (se não de fome, de angústia), de diplomas de Segundo Grau que não atestam aprendizado nenhum, de filhos queridos sem mais horizonte que o horror das FEBEMs – o qual, aliás, uma única frase sua tem poder de canalizar recursos bastantes para resolver, mas o senhor faz de conta que não tem.
O homem comum está irritado, Presidente. Não identifica com clareza os dados envolvidos, e não sabe aonde dirigir sua irritação. Estão começando a jogar latas uns nos outros. A tensão vem crescendo geometricamente nos últimos meses. Tende a se tornar visível como desordem aberta. Aí vão culpar ideologias e grupos infiltrados – mas o senhor, Presidente, com o que já passou, não vai achar que isso cola, não? Também vão reclamar uma autoridade forte que controle a desordem “que vem de baixo” – quando, o senhor sabe, a desordem foi provocada embaixo pelas decisões de cima.
É possível que o processo se arraste e só se torne insuportável nas mãos do seu sucessor – e aí o senhor “não teria nada com isso”. Mas será possível que o senhor queira passar à História como um especialista em lavar as mãos, Presidente?!?
Sabemos que, como nos tempos bíblicos, existem autoridades poderosas mais acima, que “soberania nacional” mal existe nestes tempos de corporações e FMI. Não queremos que seu governo dê murro em ponta de faca, no fim sacrificando a nós todos, como uma Cuba ou Iraque. Reconheço que tem sido um governo “de bom senso” no nível internacional. Mas precisávamos um pouco mais que bom senso, Presidente: sem abrir mão dele, precisávamos um pouco de ousadia, de coragem, de “verás que um filho teu não foge à luta”… Não de força, mas de GRANDEZA, Presidente. Pois já passamos a duvidar que seja ao país que o senhor está protegendo com tanto “bom senso”, pois o país está estropiado. E nada mais patético que um Presidente que protegesse à sua própria pessoa, em lugar de encarnar o país. E jamais se poderá encarnar um país que não se conhece mais, que ficou afastado do outro lado das barreiras policiais.
Não sou ninguém, Presidente. Tento colocar o conhecimento e experiência que tenha a serviço das pessoas em volta, com vistas à construção de uma nação digna, de baixo pra cima, de dentro pra fora, na perspectiva dos séculos. Isso não me garante sequer o acesso a uma página de jornal – mas por alguma razão sei farejar a História no ar, e assim sinto o dever de registrar estas palavras, nem que seja para soltar folhas ao vento. Talvez alguma consiga voar por cima das barreiras policiais, econômicas, institucionais. Se não, pelo menos não me omiti.
Reafirmo que não tenho envolvimentos partidários – se tivesse diria estas palavras só a alguns, não diante de todos e muito menos do senhor. Faço isso por fé de que este amontoado de pessoas e culturas tem tudo para ser uma das mais belas civilizações que já entraram no palco da História – e que merecemos construir isso vivendo de forma digna desde já. Espero não ser o último a crer.
Aliás, olho em volta e vejo tantos jovens das classes periféricas, brilhantes na mente ou no coração, lutando para crer em si, e SEI que não sou o último. É sobretudo a eles, senhor Cardoso, que cabe a um Presidente representar.