Setor de InConFormática

TORPEDOS TROPEIROS

contribuições para uma crítica da cultura cotidiana

ou simplesmente

MANIFESTOS, PROTESTOS
& ESPERNEIOS EM GERAL
uma página  claramente enviesada!
ÍNDICE

Os textos estão colocados em ordem retrospectiva, ou seja:
os últimos SÃO os primeiros 

set.2008

fev.2007

abr.2006

dez.2005

dez.2005

set.2004

mar.2003

dez.2001

abr.2000

1998

• Manifesto do PLURALISMO RADICAL

• Até o próximo crime (olhando um pouco além da emoção)

• Esperamos ansiosamente pelo seu NÃO (ou Sim!)

• Onde está a saída dos problemas

• Mestres humanos ou crias de Frankenstein

• Ensinar a pescar?

• Manifesto Pé-no-Chão ao 3.º Setor no Brasil e coisas semelhantes

• O Manifesto do Reencantamento do Mundo

• Quem avisa amigo é – carta aberta ao (ex)presidente
que jogou fora a chance de ser o primeiro estadista do 3.º Milênio

• Os rebeldes programados da Dona Burguesia

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• para a página inicial da Trópis

 

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Manifesto do
Pluralismo Radical
Expressão da essência
do pensamento & práxis da Trópis
desde sempre,
este Manifefesto está sendo publicado
em 07.09.2008, como parte das comemorações dos 10 anos da assembléia de fundação da ASSOCIAÇÃO Trópis.
10 anos de Associação

12 anos da articulação
do grupo nuclear da Trópis

16 anos de movimento
sob o nome Trópis

26 anos de defesa pública do
Pluralismo como ponto-de-partida

40 anos do impulso espiritual-revolucionário
de 1968, no seio do qual este movimento todo teve sua concepção

 

Quem espera que união e entendimento mútuo tragam a felicidade ao mundo,
esse pode desesperar sentado.
Mas a felicidade está sim ao nosso alcance: através do respeito mútuo incondicional,
independente de entendimento e de união.Só a multiplicidade nos une,
e é só por sermos todos diferentes que somos todos iguais.
As Ciências da Vida já nos mostraram
que a principal condição para a saúde dos sistemas vivos
é o convívio entre diferentes sem a eliminação de suas diferenças,
e a Física vem mostrando que essa é a condição primeira para a própria existência:
monocultura é desastre ecológico, indiferenciação entre células é câncer,
a supressão das diferenças entre partículas e forças
levaria apenas à impotência do Nada.

Por que seria de outro modo justamente na humanidade, constituída pelos seres
com maior potencial de inovação e diferenciação no universo conhecido?
As variações possíveis no jeito de ser boi são bem poucas. Ser humano é, justamente,
ter o potencial de ser imprevisível no seu jeito-de-ser, esteja-se fazendo uso disso ou não.

Cada um poder pensar e fazer as coisas do seu jeito – se e quando quiser.
Cada um construir seu caminho decidindo individualmente cada passo que vai dar –
inclusive quando escolhe dar o passo junto com outros e construir um caminho coletivo.

Coletividade: só um coletivo de indivíduos autônomos faz jus ao potencial do ser humano!
Cultura homogênea é desastre em qualquer campo!
Biodiversidade – noodiversidade –  ideodiversidade – pluralidade irrestrita:
eis a marca das situações biológicas, sociais, culturais e políticas saudáveis!

Só a multiplicidade nos une!
Só por sermos todos diferentes é que somos todos iguais!

Atenção: qualquer ser humano que se encontre, por forças humanas externas a si,
impedido de escolher seu rumo e de dar seus passos no rumo que escolheu,
encontra-se em estado de opressão.Ter que ser de um jeito que não se é
para conseguir respeito – isso é sofrer opressão.Ser excluído a contragosto, seja lá do que for,
é estar sendo oprimido.Ser incluído a contragosto, seja lá no que for,
também 
é estar sendo oprimido.

Ter que entregar a bolsa ou a vida a contragosto
é sofrer opressão.

Ter que entregar sua força de trabalho sob condições insatisfatórias
para não entregar os seus à penúria também é sofrer opressão.

Não poder decidir ou nem participar das decisões
quanto à destinação dos valores que se criou com seu trabalho –
isso é sofrer a mãe das opressões.

Oprimir é expropriar de outro ser humano sua própria condição de humano:
o poder de decidir por si.
Oprimir é sempre tentativa de desumanizar.
Fazer o outro de animal ou de coisa
para poder atuar sobre ele com a superioridade de um deus –
quando na verdade um e outro têm a mesma natureza:
a natureza do escolhedor.

Por sua natureza, todo ser humano é capaz
de escolher fazer qualquer coisa, inclusive oprimir.Acontece, porém, que o ato de oprimir deflagra inevitavelmente
uma reação-em-cadeia de infelicidades em todas as direções –
desgraças que assumem depressa mil faces tão diferentes
que logo ninguém mais percebe de onde vêm.Fora uma pequena parcela
decorrente de causas puramente naturais ou acidentais,
a infelicidade humana decorre toda de atos de opressão perpetrados
por seres humanos, e portanto evitáveis já no nascedouro –
pois seres humanos podem escolher não oprimir.Que a capacidade de oprimir é parte da liberdade humana, isso não há como negar –
mas só haverá chance de felicidade em nosso horizonte quando a humanidade decidir
que respeitará todas as liberdades de todos os seus membros –
exceto a liberdade de oprimir.

Quando a humanidade combinar que vale tudo, menos oprimir –
em qualquer das formas já mencionadas ou em qualquer outra imaginável.

Combinar que nada pode ser imposto…
a não ser isso mesmo: que não seja imposto nada além de que nada seja imposto.

Que não seja imposto por ninguém a ninguém
nada além de que não seja imposto nada
por ninguém a ninguém
:
eis o anel virtuoso capaz de garantir
a dignidade e a liberdade de todo ser humano (que são uma coisa só).

Respeito. Respeito de todos por todos.
O mais radical e absoluto respeito pela pluralidade e diversidade
das vontades e jeitos-de-ser humanos:
sem isso não há chance nenhuma de que a infelicidade humana diminua,
ou de que a felicidade cresça.
Outras condições também podem ajudar – mas a única sine qua non é esta.Todas as leis e demais instituições da humanidade podem
e devem ser repensadas a partir desse núcleo gerador único,
e substituídas por leis e instituições derivadas dele.
Todo o direito, toda a política, todas as relações humanas
,
quer dois a dois, quer bilhões a bilhões.Essa é a mais completa e definitiva das revoluções possíveis para a humanidade –
fato que depende tanto das nossas opiniões quanto o de 3×4 ser o mesmo que 4×3.
Quer dizer: não se trata de ideologia, mas está implícito
na própria lógica fundamental da existência.Mas não precisamos temer nos sentirmos oprimidos por essa única imposição:
sendo precisamente a supressão da opressão,
representará o estado de maior liberdade possível à humanidade de modo duradouro:
CONVÍVIO – o estado em que os diferentes vivem lado a lado e em paz
sem jamais tentarem suprimir as diferenças um do outro.

Só a multiplicidade nos une,
e só por sermos todos diferentes é que somos todos iguais.

Revolução da idéia de Revolução até o seu limite,
caminho mais curto para a maior felicidade possível para todos –
eis o PLURALISMO RADICAL. É só pegar e usar.

pluralismo

10anos

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Até o próximo crime
(olhando um pouco além da emoção)
2 mensagens distribuídas na internet
em 11 e em 21.02.2007,
como comentários à enxurrada de mensagens que estávamos recebendo sobre o caso
Sim, eu também chorei ao observar a cena, detalhadamente, na minha tela mental
(não costumo usar a da tevê, que vem editada demais para o meu gosto).Mas está difícil conviver com a enxurrada de mensagens e manifestações
– sem dúvida bem-intencionadas, mas sem a menor noção do que estão falando.Sim, estou falando da brutal morte de um garotinho de 6 anos arrastado por 15 minutos dependurado do carro da família tomado por jovens assaltantes num subúrbio do Rio de Janeiro.A maior parte das mensagens clama pra que os governantes façam algum coisa, e rápido. E, talvez para não se sentirem omissos, muitos até sugerem o quê.

Na copa todos viram técnicos de futebol, nestas horas todos sabem a solução – geralmente jurídica e/ou policial. Talvez alguns até ousem acenar para o pedagógico, o que é um passo mais avançado – mas sou o primeiro a concordar que insuficiente.

Pedem leis mais severas – coisa que nunca inibiu e nunca inibirá os dois tipos de gente que comete os crimes mais bárbaros: os psicopatas perversos (distúrbio neurológico) e os que não têm nada a perder.

Pedem o “fim da impunidade”, como se os presídios já não estivessem estourando de gente que cometeu crimes da natureza desse assalto, e muito piores, apenas sem a infernal “ajuda” do acaso que acabou lhe conferidno tamanha visibilidade.

Esperam talvez que se invente um detector de criminosos potenciais, capaz de identificá-los nas ruas antes que cometam qualquer crime. É provável que saibam que a ciência diz que uma corrente sempre arrebenta no elo mais fraco… mas seguramente não sabem que a Teoria do Caos demonstrou que o único modo de a ciência saber com certeza qual é o elo mais fraco é tracionar a corrente até arrebentar – e depois ver qual foi o elo que arrebentou…

Não sei se algum dia haverá como superar totalmente o risco dos psicopatas, que sempre existiu. Mas depois de 14 anos trabalhando e vivendo com jovens de periferia talvez saiba dizer alguma coisa sobre “gente que não tem nada a perder”.

Mas não pensem que depois desses 14 anos eu sugira que levemos mais uma colherinha de açúcar para adoçar o mar.

Que nós continuemos a acreditar que a chave do progresso é um sistema de geração de riqueza que não tem como funcionar sem que haja sempre uma considerável massa de desempregados de reserva, e que esse desemprego em massa gere vastas regiões onde crianças crescem sem chance de nenhuma amostra do que é bom, belo e verdadeiro –

… pois inclusive na mais tenra idade toda pré-escola que se lhes pôde oferecer foi uma tevê sabiamente orientada pelas leis do livre mercado…

… em que o entretenimento-padrão era assistir crimes bárbaros um após o outro, horas, dias e anos a fio, resultando em imbecis incapazes de perceber o mínimo valor numa vida humana, nem distinguir o encenado do real – e isso só para começar…

… não, isso tudo não tem nada a ver com o caso não. Dizer que o sistema capitalista é o culpado é coisa de dinossauros, o muro de Berlim já caiu, a história-como-busca acabou, já vivemos no melhor sistema possível.

Moderno mesmo é procurar um bode expiatório e pregar na cruz. Aí poderemos dormir tranqüilos.

Até o próximo crime.

Palavras que acompanharam a segunda mensagem (21/02):

Prezados – espero de coração
não estar sendo importuno!

Acontece que VOCÊ estava entre as pessoas que receberam meu texto de 11/02 (Até o próximo crime),
o qual parece ter deixado espaço para alguns mal-entendidos,
de modo que me sinto no dever de acrescentar alguns parágrafos que deixem mais nítida a imagem pretendida.

Abraços sérios,

Ralf Rickli
Pedagogia e Filosofia do Convívio
Comunicação Transcultural

 

Para uma missa de 14 dias numa 4.a feira de penitência
PS ao artigo “Até o próximo crime (olhando um pouco além da emoção)”
21.02.2007Ah, se fosse assim tão simples! Se houvesse pessoas más em um lugar, insidiosamente cometendo más ações, e se nos bastasse separá-las do resto de nós e destruí-las! Mas a linha que divide o bem do mal atravessa o coração de todo ser humano. E quem se disporia a destruir uma parte do seu próprio coração?

A.Soljenitsyn (apud Zweig e Abrams, Ao encontro da sombra)

Nada, jamais, pode ser entendido a menos que olhemos por muitos lados, dos quais alguns serão sempre aparentemente contraditórios (ver p.ex. a Teoria da Complexidade de Edgar Morin). O que estou fazendo aqui é compartilhar alguns ângulos que até agora não vi explorados na imprensa nem nas mensagens da internet, sobre a morte do menino João Hélio em 07.02.2007 e sobre o seu contexto.

1. O alcance limitado das leis

Por um lado, não há dúvida de que muita coisa pode e deve ser melhorada nas leis brasileiras.

Por outro, é absoluta ilusão imaginar que exista alguma melhoria possível no aparato de leis e no sistema repressivo que possa dar garantia de que um tal crime nunca venha a ocorrer. Podemos tentar reduzir as probabilidades, mas alguma possibilidade sempre restará, como parte das incertezas inexoráveis da existência.

Um dos mais fortes clamores logo após o crime foi por “providências imediatas das autoridades”, como por algo de novo. Na realidade as providências cabíveis já estão previstas nas leis, e são precisamente as que foram tomadas: a prisão, em poucos dias, de todos os responsáveis.

Quanto às leis que serão aplicadas no processo que se seguirá, é provável (como já disse) que possam ser bastante melhoradas – mas de nenhum modo se pode dizer que sejam brandas. E pensar que qualquer endurecimento adicional pudesse ter impedido esse crime e outros semelhantes, isso é acreditar em varinha-de-condão.

Além disso, pensar que as leis devam ser mudadas a cada crime que chega a acontecer, “pois, se as leis fossem acertadas, os crimes não aconteceriam”, é falar com um desconhecimento de causa atroz; com uma leviandade que, sobretudo quando reforçada pelo poder formador de opinião da grande imprensa, chega ela mesma a ser criminosa.

2. Há algo de novo nesse crime?

Paulo Coelho referiu-se a esse crime como sinal de o quanto estaríamos nos aproximando do “mal absoluto”. Por melhores que sejam as intenções, isso também não passa de fantasia que termina por nos obscurecer a percepção do real, e com isso termina atuando no sentido contrário das boas intenções.

Por triste que isso seja, não há novidade nenhuma em um crime assim na história humana. Os mais antigos textos da humanidade, inclusive o Velho Testamento, estão repletos de relatos das maiores atrocidades cometidas por “dá cá aquela palha”. Dostoievski gasta algumas das mais profundas e quase insuportáveis páginas de Os Irmãos Karamázovi relatando as mais bárbaras atrocidades contra crianças, muitas delas cometidas pelos próprios pais – baseando-se para isso em notícias dos jornais da época.

Eu gostaria, aliás, de poder dizer que a atual indignação diante de crimes assim fosse um sinal de estarmos, ao contrário, nos deslocando na direção do bem… mas creio que também seria ilusão: por um lado, como em certos relatos bíblicos, a indignação em si justa continua levando a reações que são às vezes tão ou mais iníquas que o crime original.

Por outro, porque a violência física e/ou psicológica contra crianças (sem nem falar agora de outras categorias de violência) continua um dos fatos mais comuns do nosso cotidiano – e embora com não muita freqüência, não se deve desconsiderar que tal violência às vezes chega a resultar em morte (direta ou indiretamente, como suicídio).

Mais significativos, porém são os aleijões psíquicos resultantes, encontrados na maior parte da população (isto é: de nós), os quais são sem sombra de dúvida uma das principais vertentes que alimentam a probabilidade de crimes como o perpetrado contra João Hélio.

A inequívoca culpa da instituição “família”, como a conhecemos, está sobejamente demonstrada por gente como Ronald Laing ou Arnaldo Rascovsky, mas preferimos continuar nos fazendo de desentendidos, dizer que tais estudiosos é que são mentes doentias e – como faz o Estatuto da Criança e do Adolescente – fantasiar que a família como a conhecemos seja parte da solução, e não do problema. No mínimo por essa gigantesca mentira somos sim todos culpados – desta vez concordando no genérico com a formulação de Paulo Coelho.

3. Coloque-se no lugar por um instante

O ser humano é incapaz de compreender o que quer que seja a não ser quando se coloca “no lugar de”. Isso não necessariamente significa perdoar! – mas entender é essencial mesmo quando não seja para perdoar.

Neste caso é evidente que a intenção inicial do grupo criminoso não era matar nenhum garotinho: era roubar um carro, fazendo o que fosse necessário para isso. Não são mais monstros do que milhares e milhares que continuam por aí com intenções do mesmo tipo. Nem um pouco mais, aliás, do que um especulador de bolsa que tira vantagem de quebrar um país, mesmo sabendo que milhares de crianças irão sofrer ou mesmo morrer em conseqüência disso.

Por que os ladrões não pararam ao perceber que o garotinho estava lá? Uma, porque haviam saído para a guerra; e a diferença entre essa violência e outra qualquer mais comum (como por exemplo atirar na mãe diante da criança) termina desaparecendo na embriaguez do calor da batalha. (Ou será que também não é verdade dizer “na lucidez do calor da batalha?” Pois trata-se de um estado endógeno bastante semelhante ao do efeito da cocaína – lucidez de raciocínio com supressão dos sentimentos -, droga presente em boa parte das decisões de altos executivos, como as referidas no parágrafo anterior.

Para concluir este aspecto: me pergunto como é que não se está vendo que, sendo os ladrões quem eram e vivendo onde viviam, era evidente para eles a altíssima probabilidade de serem imediatamente linchados se parassem o carro para soltar o menino!

4. Onde concordo com a insuficiência das penas – porém de outro jeito…

A irmã de João Hélio falou que os criminosos devem “pagar pelo que fizeram”, independente da sua idade. Natural que o diga, é quase uma criança. Mas alguma pessoa madura pensará que há no mundo preço capaz de pagar pela vida de uma criança? Desculpem, mas, se pensar isso, é que ainda não está madura, mesmo que tenha 60 anos!

A idéia de justiça como castigo ou punição é uma infantilidade ou primitivismo que precisa ser superada o quanto antes. Há só três sentidos racionalmente consistentes na aplicação de penas (palavra já em si inadequada): (1) a tentativa de reeducação ou de terapia do criminoso, tanto quanto possível; (2) quando possível, a reparação objetiva do dano (por objetiva quero dizer: de valor não meramente simbólico), o que em si também é parte do primeiro sentido (reeducação ou terapia); (3) quando impossíveis os casos anteriores, o isolamento continuado do criminoso, não como punição mas como proteção ao restante da sociedade.

Em artigo na Folha de S.Paulo em 15/02, o psicanalista Contardo Calligaris dirigiu sua usual lucidez contra a hipocrisia que nos impede de aceitar essa realidade: independente de sua idade no momento do crime, o ser humano psicopata precisa ser isolado e tratado até que possa ter alta com considerável segurança – o que pode levar 10 anos, ou nunca acontecer.

Isso equivale a dizer que precisamos, sim, contar com a instituição da internação perpétua – e também com a internação de menores por mais de três anos. Contardo tem razão: negá-lo é irracional e hipócrita. Porém…

É importante perceber a imensa diferença entre esta posição conquistada por conhecimento e por racionalidade, e aquela outra que prevê aparentemente as mesmas coisas com o caráter de castigo. No mínimo porque estamos falando de tentativas de terapia e/ou reeducação reais, quando cabível, não dos simulacros usuais. E de, quando a recuperação não for possível, de internação em condições humanamente dignas – que de nenhum modo facilitem a continuidade das ações criminosas (como os famosos celulares) mas, sim: em condições humanamente dignas. Pois não se trata de castigo nem de punição, e sim de proteção universal a todos os seres humanos: tanto aos que estão fora, como à pessoa do próprio criminoso, a ser protegida de seu próprio lado destrutivo quando insuperável.

5. “Nós” e “eles”: o lado mais delicado da questão

Tudo isto, porém, esconde ainda mais uma questão – uma questão tão profunda, tão grave e que o país denega tanto, que sei que corro o risco de ser eu acusado de doente por tentar expor a doença denegada (em termos psicanalíticos, aquilo que negamos que existe, e em seguida negamos até que tenhamos negado… pois… afinal… “não existia nada lá para ser negado, não é mesmo?”)

A maior parte das propostas partem do pressuposto de que há grupos nitidamente separados na sociedade: “os cidadãos de bem” e “os bandidos” – ou pelo menos um grupo do qual às vezes sai um crime, mas é exceção, e outro do qual saírem crimes é a regra. Dois grupos que seria possível identificar com clareza – pois se não como se poderiam tomar medidas de precaução, como se quer?

Trata-se de uma operação muitíssimo bem conhecida na psicologia, sobretudo na junguiana, com o nome de “projeção da sombra”. No fundo todos sabemos que somos capazes do mal, que somos todos capazes de todos os crimes – mas negamos ter em nós a parte que seria capaz disso.

E então escolhemos um outro que pareça bem diferente de nós, e imaginamos: “se existem no mundo tendências ao mal, elas estarão lá, no que é bem diferente de mim. Em mim e nos meus não há nada disso não!” Não importa quem esteja falando, o mau é sempre o outro, nunca eu! Somos uma imensa sociedade de “eus” inocentes e de “outros” culpados…

É óbvio que o outro também tem sua própria fração de maldade: é humano! Mas a maldade que eu imagino estar vendo nele não é a dele: é a minha, que eu nego ter.

E isso se torna especialmente perigoso quando passa à dimensão grupal, ou ao imaginário social: arianos e judeus, hutus e tutsis, “cidadãos de bem” e “bandidos em potencial”.

Não cabe detalhar aqui os meandros históricos do caso brasileiro, o que daria diversos livros (e já tem dado; ver p.ex. o de Roberto Gambini) – mas grosso modo as classes alta até média-média (fortemente minoritárias) se identificam como “os cidadãos de bem” e projetam no restante da sociedade (a grande maioria) a imagem de “bandidos em potencial”.

Como já disse no artigo inicial, falo a partir de 14 anos de trabalho e convívio íntimo com moradores de favelas e situações semelhantes – ou seja: “bandidos em potencial”. Alguns de inteligência e sensibilidade refinadíssimas e com as mais nobres escolhas de vida… mas pela generalização corrente todos “bandidos em potencial”.

É daí que sei que as medidas que os “cidadãos de bem” costumam exigir terminam significando apenas um aumento da tensão e do risco de arbitrariedade sobre uma população que já é a principal vítima da situação toda, uma população que convive no dia-a-dia, anos e décadas a fio, com um grau de sofrimento que os senhores “cidadãos de bem” não conseguem nem supor que seja possível alguém agüentar dois dias.

Mas quem é essa população?

Deixemos a hipocrisia de lado: são basicamente os descendentes de (1) os ameríndios expropriados de suas terras e culturas a partir de 1500; (2) os africanos escravizados e depois abandonados sem condições de recomeçar, sob o nome “libertação”; (3) os brancos que não tiveram competência (ou insensibilidade?) suficiente para garantir seu lugar entre os que se aproveitaram dessa situação.

A mera existência dessa população é um lembrete incômodo de que, em nosso país, TODO o bem-estar de que alguém desfrute vem assentado, alicerçado, nesses dois vastos crimes fundadores.

E aí precisamos desesperadamente esquecer que nosso bem-estar se alicerça no mal, precisamos desesperadamente mostrar que o mal é característica exclusiva deles lá, não nossa.

(Que um pitbull que guarda propriedades dilacere uma criança na rua – como já aconteceu… isso causou algum apelo por pena de morte aos proprietários irresponsáveis de pitbulls?)

Para concluir: a pesquisa genética já demonstrou que a população branca brasileira só tem cerca de 1/3 de gens brancos pelas linhagens maternas: os outros 2/3 são mais ou menos igualmente divididos entre gens ameríndios e africanos.

O mais trágico dessa situação toda é então o patético esforço de negar em nós, “os de sucesso”, qualquer parentesco com “essa gente lá”, traindo o que trazemos em nós de nossas avós, bisavós, tataravós.

Como lidar com isso? Não é assunto para um fim de artigo! Talvez para outro artigo, porém mais realisticamente para uma série, uma obra, várias vidas…

Me limito agora a declarar, com a mais absoluta convicção, que não haverá melhora no país, por séculos, a menos que “os de cima” se assumam como os iguais e irmãos “dessa gente” que de fato são;

… a menos que desistam inclusive de mentir que pretendem incluir “os de baixo” no seu projeto “de cima” (o que é evidentemente impossível, nem o planeta o suportaria!), e passem a se incluir junto aos de baixo num vasto projeto único de busca de bem-estar para todos…

(… o que talvez devesse começar por abandonar a segregação dos seus filhos nas escolas particulares).

Isso jamais? Ah, então não se queixem das conseqüências, senhores! A escolha foi vossa!

Da minha parte estou aqui tentando fazê-lo em respeito aos evidentes traços indígenas da Dona Zica, minha avó (sempre negados na família…) e à linhagem de valentes escravas e pós-escravas emprenhadas por filhos de senhores, de onde saiu meu avô Seu Aníbal… (e, de resto, a tudo o que o mato tenha conseguido gerar de caboclo nos suíços Rickli em 138 anos).

Porque aqui, descalço neste chão e com os ancestrais vibrando em mim, eu ainda consigo sentir um pouco de esperança. Nas justificadas prisões que são esses apartamentos de luxo pretensamente globais, não há mesmo outra coisa a enxergar a não ser crescente desagregação.

Culpa de quem?

 

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Esperamos ansiosamente pelo seu ‘NÃO’
(ou pelo SIM!)
uma
declaração de princípios
e um grito de campanha
em forma de mensagem a
AMIGOS
PARCEIROS
CANDIDATOS Ade todos os tipos,
profissionais e pessoais
Escrevi esta mensagem como:
(1) amigo dos amigos pessoais
a quem me dirijo
(2) principal formulador das idéias que tentam se realizar na Trópis

– porém não como coordenador ou representante oficial da Trópis,
já que o tema não foi debatido em círculo.

03.04.2006
(a) Ralf Rickli

 

Esta mensagem vai para dizer o quanto espero pelo seu NÃO!

Mas não me entenda mal: gostaria ainda mais de receber um SIM aos convites ou propostas que eu tenha lhe enviado – mas, se isse não for possível, que venha logo o “não”, ou pelo menos um “aguarde, estou/estamos pensando no assunto”.

Todos nós sabemos: na cultura brasileira a palavra “não” é tabu, não pode ser pronunciada…

Existem coisas maravilhosas na cultura brasileira, outras terríveis, geralmente as derivadas da escravidão – especialmente a desvalorização do trabalho físico e o tabu quanto a expressar desacordo, ou seja: dizer “não”.

Ora, é claro que uma vida só de concordâncias não é possível! O que precisamos é estar de acordo que não ficaremos de mal por discordarmos aqui e ali, pois ali e aqui também concordamos! Mas se não sabemos dizer “não”, boa parte da vida se torna apenas um cenário,
uma mentira…

… e fica complicadíssimo viver, porque nunca sabemos com certeza sobre que pedra podemos construir, porque é real, sobre qual não podemos, porque é cenário.

Creio que existem duas formas principais de não dizer “não”: a tradicional, que é dizer “sim” e fazer outra coisa, e a nova, que é simplesmente não dizer nada.

Dá para escrever uma tese inteira sobre as implicações das duas, mas… – não, não se assuste, não vai ser aqui!

Por agora queria apenas que você, de coração, sentisse, como eu, que nada vai melhorar e que nossas mais lindas intenções e discursos viram farsa nociva se não aceitarmos o desafio de transformarmos nossa cultura nesse ponto.

Afinal, qualquer uma das formas de não dizer “não” é um meio de fazer nossa vontade prevalecer sobre a do outro deslealmente, sem o ônus de lutar ou de carregar qualquer responsabilidade por isso.

Exemplo típico é o “cozinhar em água fria”: não digo o que quero nem o que não quero, nem dispenso o outro, mas vou levando até que ele não agüente mais e tome uma atitude – muitas vezes uma explosão em desespero de causa, para não “ter um treco” – e aí eu consegui o que eu queria… deixando a responsabilidade ou culpa recaírem sobre ele.

Outra razão comum é tentar evitar que me fechem portas embora eu não assuma nenhum compromisso de entrar. Ou seja: tentar não excluir de antemão possíveis vantagens que talvez possa haver no futuro – não me importando um mínimo com quê prejuízos minha indefinição poderá causar nos processos do outro.

Por inofensivas que essas coisas pareçam, olhadas com cuidado as palavras que lhe cabem não são menos que “manipulação”  e “opressão”.

E por essas e outras é que dizemos sempre que a única coisa capaz de melhorar o mundo será “uma revolução ética na micro-estrutura do cotidiano”.

Mas não quero terminar sem comentar a forma mais moderna, aparentemente elegante, profissional e clean que a mesma coisa vem assumindo agora, especialmente em São Paulo:

julgar que é aceitável, entre dois seres humanos, não responder nada quando outro nos dirige a palavra. Agir como se o outro não existisse – coisa que jamais foi considerada decente ou aceitável em nenhuma cultura humana.

Em alguns lugares e épocas, fazê-lo seria o mesmo que convocar um duelo de vida ou morte, quem sabe uma guerra de clãs – e mesmo os ingleses, tantas vezes tão friamente soberbos, eram tradicionalmente ensinados a nem abrir uma carta se já não tivessem em mãos papel, pena e tinta para a resposta.

Mas hoje, para muitos, ignorar a pergunta do outro (oral ou escrita) é uma atitude natural, em que nem há o que justificar. Alguns, ainda um pouco mais humanos, dão algumas desculpas típicas – que todos concordamos em engolir mesmo sendo evidente que “não colam”:

– Recebo dezenas ou centenas de mensagens todos os dias, a maior parte spam,
e não tenho como identificar uma ou outra importante no meio dessas.

Ora, com 200 mensagens diante mim, na verdade 1 ou 2 minutos são suficientes para reconhecer quais são anúncios, quais têm caráter de comunicação pessoal. – A outra é:

– Com tanto trabalho, simplesmente não tenho como responder.

Ora, na verdade todo mundo sabe que (como dizia sempre minha mestra de piano, Ingrid Seraphim): “ter tempo é uma questão de preferência”, e se o outro tomou do seu tempo para dirigir a palavra a mim – porque viu razões para isso – o que me dá o direito de achar que isso não custou nada a ele, ou que só o meu tempo tem valor?

Claro, é evidente que tenho todo direito de preferir não interagir com fulano. Mas se ele me dirigiu a palavra pessoalmente, a coisa menos brutal que posso fazer é dizer “não, obrigado, não quero”, ou no mínimo (se for verdade) agora não”.

Isso parece brutal?

Brutal mesmo, indignamente brutal, degradantemente brutal,  é fingir que não ouviu…

… atitude que, como já disse, nunca foi aceita nas culturas tradicionais da humanidade – nem pode ser aceita por ninguém que se proponha a cultivar uma vida humanamente digna.

O “berro” que eu, pessoalmente, costumo dar diante dessas situações costuma ser interpretado como grosseria… da minha parte!… Porém toda violência que aparece é reativa – ou seja, surge em reação a uma violência anterior silenciosa ou invisível. Reparem, e verão que essa é uma lei tão infalível quanto a da gravidade.

Deixo claro então que dou meu já conhecido “berro” como ato revolucionário: 

um ato consciente de não-aceitação e denúncia de uma mais que grosseria, de uma forma de violência que se conta entre as principais responsáveis pela degradação do convívio humano, pelo estado de desrespeito recíproco surdo, invisível, porém constante que nos acostumamos a considerar natural!

E o outro caminho é tão simples…

Não quer aceitar meu convite, minha proposta, meu projeto? Por favor, diga “não”. Isso me deixa livre para procurar outro parceiro, outro caminho.

Não tem certeza de que quer dizer “não”? Por favor, diga isso – ao mesmo tempo que propõe (a mim e a si) um prazo para sua decisão. Diante disso também posso desenvolver no mínimo um planejamento relativo ou condicional das minhas ações.

Seremos imensamente gratos, portanto, pelo seu nítido “não”, ou “agora não”!

Deixando claro, porém, que não é que morramos de amores pelo “não”: quando você disser “sim” seremos mais que gratos, seremos exultantes – e iremos logo procurar, juntos, alguma maneira de celebrar!

Afinal, é por uma vida de verdade que lutamos (e essa luta
com certeza será mais saborosa com você ao lado!)

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ONDE ESTÁ A SAÍDA DOS PROBLEMAS
da Associação TRÓPIS
a seus amigos
no Natal de 2005
Quando algum amigo ou amiga diz que está enfrentando problemas,
costumamos dizer – brincando porém a sério: “é prova de que você está vivo(a),
pois viver significa enfrentar problemas”…Mas geralmente o assunto não termina aí:muitas vezes vemos claramente que essa pessoa encontrará soluções para os seus problemas – ou pelo menos encaminhamentos para eles – se parar de tentar enfrentá-los diretamente, no seu campo de batalha de sempre, e vier nos ajudar a enfrentar os nossos problemas (ou os de outras pessoas ou grupos que trabalham como nós na reinvenção da possibilidade do Convívio Humano).Aí fazemos o convite: “olha, a solução que você procura pode estar aqui,
por que você não vem nos ajudar uns dias?”

E aí…

nosso amigo ou amiga se desculpa: “eu gostaria muito de poder ajudar, mas agora não dá.
Preciso primeiro resolver estes meus problemas. Depois que eu resolver, eu vejo se tiro uns dias e vou lá ajudar.”

Não sei se ela ou ele realmente acredita que um dia estará de fato sem problemas, como condição para ajudar os outros – o fato é que segue lá, se batendo sozinha(o) com problemas
que nós podíamos ajudar a enfrentar…

… e nós seguimos aqui com os nossos, apesar da nossa boa disposição!

Quando é que vamos todos acordar para o fato de que NOSSO DESTINO NOS FALA SEMPRE ATRAVÉS DAS NECESSIDADES DOS OUTROS QUE PÕE EM NOSSO CAMINHO?

Quanto mais cuidamos da nossa vida a partir de razões puramente nossas, isoladas, menos livres nos tornamos: mais e mais ficamos na dependência da “proteção” do “sistemão” monstruoso da vida moderna – que cobra “apenas” a transfusão da nossa Vida para suas veias, e de nossas almas para seus nervos metálicos.

 

 

 

 

 

 

 

colibri

 

Nesta época do ano
as celebrações de insuportável mau-gosto e hipocrisia que vemos  por todo lado
buscam neutralizar o verdadeiro sentido da mensagem do suposto homenageado: 
“levai as cargas uns dos outros”…
… mensagem sem o menor laivo de beatice ou ingenuidade
– pois se a levássemos a sério de modo constante, o resultado seria 
uma teia indestrutível de pessoas 
garantindo a Liberdade umas das outras!SOLIDARIEDADE LIBERTÁRIA.Afinal,

se é verdade que o Divino se encontra em semente em cada ser humano individual, o fato é que tal semente nem ao menos germina senão quando inserida no terreno que é a VIDA CONJUNTA (humana e dos demais seres da Terra e do Universo): tornar-se divino é assumir responsabilidade pelo sustento e bem-estar de algo além de si.

Eis aqui, então, o nosso presente de Natal:

TEmos um monte de problemas esperando por você!

Mas só os oferecemos porque sabemos que frente aos seus problemas
eles podem representar caminhossoluções & libertações!

Que tal aprofundar nosso envolvimento em 2006?

Com um abraço humano caloroso,
Ralf Rickli & o pessoal da Trópis

Beija-Flor: foto de Carlinhos do Santos incluída na mensagem original

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Mestres humanos ou crias de Frankenstein
Trabalho de 64 páginas
publicado na internet e em apostila
em dezembro de 2005
Nesta página:
link para download em doc/zip
O trabalho com o título acima nos ocupou quase integralmente por 70 dias de 2005, e é uma proposta positiva para os cursos de formação superior de professores e outros profissionais da Educação (hoje divididos em Pedagogia, Licenciaturas e Normal Superior).

Tal proposta positiva só faz sentido, no entanto, no contraste tanto com os modelos já estabelecidos quanto com as novas diretrizes baixadas pelo Conselho Nacional de Educação.

Desse modo, uma parte do trabalho foi a análise crítica de uma das últimas versões de trabalho dessas diretrizes, distribuída no mundo pedagógico brasileiro em setembro de 2005
– e aqui foi inevitável descambar precisamente para o “modelo torpedo”.

Para dar idéia, transcrevemos aqui os títulos de capítulos da seção em questão,
colocando em seguida um link para download do trabalho – inteiro, 
inclusive as propostas positivas! – em formato doc/zip.

1.2.1. Manejo deficiente da lógica – ou a ruptura cérebro-cabeça

1.2.2. Confusão entre levantamento histórico e justificação

1.2.3. Curso de Pedagogia, licenciado, disciplinas pedagógicas:
a casa com alicerces no telhado

1.2.4. Confusão quantidade-qualidade; o autotratorvião

1.2.5. Ideologização das contribuições integrantes

1.2.5 e meio: Um meio passo adiante

1.2.6. Desonestidade nuclear: o punhal nas costas das habilitações

Para o download clique ou vá até

http://www.tropis.org/biblioteca/pc11-formamestres.zip

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Ensinar a pescar ?
Escrito de chofre e divulgado
entre amigos na net em 29.09.2004
enquanto escrevia o artigo
Sustentabilidade, Trimembração e RedesInspirado no fato de que a maior parte das pessoas que falam de ‘não dar peixe, ensinar a pescar’ ignoram totalmente a realidade das pessoas que propõem ensinar, bem como as verdadeiras relações econômicas entre os diferentes setores da sociedade
Não me venha com esse papo de me ensinar a pescar.

Essa não é minha profissão e não pretendo que um dia venha a ser.

Ademais, não estou pedindo que você me doe esse peixe,

estou pedindo apenas que me entregue alguns do que pescou

em troca das redes que fiz , das varas que preparei,

das trilhas que abri no mato até o rio

para você pescar

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MANIFESTO PÉ-NO-CHÃO
ao terceiro setor no Brasil e coisas semelhantes…
divulgado em 12.03.2003 na Lista FundBR

(ponto de encontro internético de captadores e outros interessados em captação de recursos para o Terceiro Setor)

De repente me vem a imagem de meu pai Otto Rickli, saído da roça e formado médico depois dos 30, comentando pensativamente aos 50 a sentença que lera em Tolstói: “ser pobre em um país de ricos é uma vergonha – mas ser rico em um país de pobres é um crime…”

Não duvidei: era o óbvio. Mas nunca achei que as receitas tradicionais, nem da direita nem da esquerda, dessem conta da realidade. Professores politicamente avançados também podem ser mortalmente chatos, destruindo nos alunos todo prazer de conhecer – e sabemos quantos desastres tanto o Oeste quanto o Leste impingiram ao meio ambiente. Por isso sempre fui atrás do alternativo: no conhecimento, na agricultura, na educação, na administração…

Nessa busca fui parar na Inglaterra, onde deparei com Judy Hurley (depois Bloomgardener), egressa de quantos movimentos alternativos norte-americanos se possa imaginar: anti-nuclear, feminista, de agricultura orgânica…

Assim que voltei, minha mestra quis conhecer o Brasil. Preparei cuidadosamente uma agenda visitando tudo o que me pareceu alternativo no novo país que eu encontrara (pós-abertura Geisel). Judy passou zunindo por tudo aquilo e poucos dias depois estava profundamente envolvida com as Comunidades de Base da época (1982) – que me pareciam então de um esquerdismo tão convencional e pouco… “alternativo”…

Diante da minha surpresa, Judy deixou claro entender que uma alternativa que não se referisse à absoluta maioria da população do país não era alternativa nenhuma, era pura imitação de modelos externos. Seu trabalho, na realidade norte-americana, havia sempre sido política de base. A política de base aqui seria outra, de acordo com as urgências locais. (Depois disso Judy coordenou por alguns anos o movimento Abraço, nos EUA, pelo cancelamento da dívida do Terceiro Mundo, antes de se assentar como terapeuta de refugiados…)

Revejo o caminho mais uma vez:

1968: eu, com 11 anos, olhando fascinado de longe as cores do movimento hippie… Depois, com 20 e pouco, me engajando quando esse já tinha virado “movimento alternativo”… Pra me contarem, aí pelos 40, que eu era parte do “terceiro setor”: iniciativa da sociedade civil com objetivos sociais.

Hoje não dou conta de ler os inúmeros boletins e anúncios de seminários que me prometem ensinar como cuidar do Terceiro Setor com as ferramentas da Administração de Empresas – ou então como cuidar da Administração de Empresas com ferramentas, digamos, alternativas (p.ex. meditação).

Tudo incrível, maravilhoso. E inacessível a quem vem há anos tentando desenvolver, no nível do chão, “sem parentes importantes e vindo do interior”, alternativas reais para jovens que encontram limitações econômicas na sua busca de desenvolvimento humano integral.

O número absoluto está obviamente superado
– deve beirar 160 milhões em 2006.A expressão em porcentagem é provavelmente próxima da realidade, e hoje não apenas para o Brasil mas para o mundo como um todo… fato que talvez se possa relacionar com o rótulo “brasilianização da sociedade”, criado por sociólogos e economistas de outros países na década de 1990 ou pouco antes. 

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio…

Manuel Bandeira, em Os Sapos (1918)
– partindo da canção infantil, é claro!

Este é o fim do poema, que antes descreve uma competição de falas vaidosas entre os mais variados sapos (referência não explicitada na primeira divulgação deste texto)

Colegas: pelo menos 85% dos brasileiros, 145 milhões, “encontram limitações econômicas nas sua busca de desenvolvimento humano integral”. Sim, não menos – se isso inclui, p.ex., um bom psicoterapeuta, um ensino inspirador, um pão integral sem resíduos tóxicos… um bom seminário sobre cooperação.

E as alternativas maravilhosas que cintilam na internet, atingem a quantos deles mesmo? Ou, mesmo que pretendam, quanto do investido chega ao nível do chão, quanto fica pelo caminho remunerando a tão decantada profissionalização do terceiro setor?

A qualidade dos serviços sociais profissionalizados agora encanta nossa sociedade esclarecida – na forma de balanços e relatórios bem escritos! Quem vai lá conviver com os atendidos alguns dias e sentir a qualidade do conteúdo do trabalho?

Os meios adoram tomar o lugar dos fins, e o acessório custa várias vezes o essencial.

Pois já o “investimento” requerido pelos cursos que prometem ensinar uma pessoa a gerir adequadamente a relação custo-benefício nas iniciativas sociais, esse investimento é com freqüência um múltiplo qualquer do valor com que a iniciativa, de um jeito ou de outro, fazia mensalmente o milagre de atender umas dezenas de crianças, ou algo assim.

Quanto altruísmo da parte de profissionais que deverão abrir mão da maior parte do retorno desse investimento! Ou… ?

Pois é, uma suspeita chata insiste em zunir em volta da minha cabeça: essa tal profissionalização do terceiro setor não seria apenas um mercado de trabalho alternativo vislumbrado pelos profissionais da área econômico-administrativa, pressionados demais no seu próprio setor – porém menos preocupados com os efeitos sociais últimos de sua atuação que com o preço da banana no interior da Nova Guiné?

Mas não, não, imagine se uma coisa dessas seria possível, longe de mim tal interpretação maldosa!

De um modo ou de outro, fica cada vez mais difícil, a simples cidadãos que quiseram tomar uma iniciativa social, conseguir realizar alguma coisa, ou mesmo sobreviver, nesse mundo tão profissional! Não dá mais pra ser cooperativo a não ser competitivamente!

Mas como sempre houve gente estranha nesse mundo… ainda estamos aqui… sapo cururu… na beira do rio… à espera de colaboração… da cessão de uso de bens, como sempre cedemos… da doação de serviços, como sempre doamos… ou de sua execução por remuneração simbólica, como a que qualquer professor de escola pública recebe mês após mês… fazendo de um modo ou de outro nossos pequenos milagres… neste país exótico aqui embaixo, onde ainda se anda com pés no chão.

(Obs.: será que alguém mais anda pensando nessas coisas? Fiquei curioso!)

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O Manifesto do Reencantamento do Mundo
 

 

Este texto foi escrito
ao longo de várias semanas de debates
com jovens da periferia paulista
 no Núcleo de Estudos Trópis

… a partir do mote “Reencantamento da Educação”

… surgido em conversas e aulas com os Profs.Drs.Marcos Ferreira Santos e
José Carlos de Paula Carvalho
,
do CICE – Centro de Estudos do Imaginário, Cultura e Educação da FEUSP

Jovens e adultos, crianças e velhos de coração vivo,
recusamos acreditar que a vida tenha que ser tão besta como nos tem sido apresentada.
Um mundo em que todos têm que rosnar uns para os outros, e cumprir metas cinzentas,
que ninguém sabe quem estabeleceu – nem a que levam.Acontece que o suco da realidade está além do que pode ser reduzido a peso, medida, preço.
Isso é só o esqueleto. Viramos um mundo de roedores de ossos. Queremos mais que isso. 
Podemos
 mais!Salvar Galileu e queimar Giordano Bruno deu numa civilização manca.
Mas nós não embarcamos na viagem dos céus vazios e silenciosos (Nietzsche).
Assumimos nossa porção índia e suas lições, e estamos vendo que o Universo é inteligente,
e que todos os seres se comunicam em existência e em sentido.
Tudo tem alma, sentido, consciência, intenção. 
Tudo
 dialoga com o ser humano, se este quiser escutar.Encantamento! Não, não falamos de simulacros, de sonhos enlatados disneyanos
pintados em paredões sem vida, nem de telinhas fosforescentes numa vida-prisão.
Falamos de consciência aguda do Momento e do Lugar.
Você frente a frente com as coisas, cara a cara com a Vida.
Vendo mundos em grãos de areia, e um céu numa flor do mato (William Blake).

Sábio é quem com tudo se espanta (André Gide). Gente como Goethe e Aristóteles via aí
o princípio de toda Ciência; você acha bobagem?

Olhos de criança ávida de conhecer o mundo! Todo Ser Humano é capaz de se encantar…
e de em seguida reencantar o mundo. Com mãos de Amor.

 

Foi lançado como parte de uma campanha
com uma leitura cênica
 por Anabela Gonçalves
Gil Marçal
 e Ralf Rickli
no intervalo de um show da banda Provisório Permanente

aquela noite representada por
Gunnar Vargas, voz e violão
Peu Pereira, gaita
Pitu Leal, bateria

 no Centro Cultural Monte Azul,
São Paulo, em 01.12.2001

É sério: só com profissionais encantados teremos mundo onde valha a pena viver.
Não só os artistas e cientistas. Para o professor, é óbvio, essa é a primeira condição.
Mas não basta: o DELÍRIO RESPONSÁVEL precisa chegar ao hardcore dos que fazem este mundo:
engenheiros, advogados, administradores… 
Até que o sonho realize cidades menos irracionais, até que os funcionários dos três setores suicidem essa violência estéril chamada burocracia, até o último juiz enxergar que condicionar Justiça a “excelências” e “meritíssimos” é opressão indigna de subsistir num mundo digno de subsistir. 
Até que todas as relações humanas tenham rosto humano de novo.
Felicidade, sim!, como objetivo da sociedade!
Economia, Desenvolvimento, Técnica, Poder… como meios,
jamais como razão das nossas escolhas. Servos
da felicidade de todos os seres.

O que é preciso… é cultivar nosso jardim (Voltaire).
Ser Humano e Natureza parceiros, mundo e vidas construídos como Arte.
Dançar ao produzir… e dançar por dançar!
Uma Ética nascida não de regras, mas da percepção do brilho nos olhos do outro.
Humor, sempre – mas nunca sem Amor.

Mirantes em toda parte
como investimento: afinal, sou do tamanho do que vejo,
e não do tamanho da minha altura 
(Fernando Pessoa). A cidade está produzindo multidões sem visão
– e a solução não está em “líderes sábios”, pois podemos ser um povo inteiro de sábios. 
Visão e maravilhamento para todos!!!

A expressão

Fique de olho
no Beija-Flor!

foi usada como slogan da campanha, e
junto com o selo (criado por Peu Pereira em trabalho conjunto com Ralf Rickli – ver acima) freqüentou todos os materiais e ações
da Trópis por vários anos. 

Para essa escolha,
além do encantamento óbvio causado
pela visão de um beija-flor,
foi levado em conta seu papel
na cosmogonia guarani.

Não, não adianta disfarçar: jamais haverá encanto verdadeiro enquanto for privilégio de poucos.

Basta da falsidade do tal “princípio do proveito próprio” (Adam Smith),
com sua mãozinha tão invisível quanto vendida, que construiu o inferno atual.
Somente a ação altruísta é verdadeiramente humana!
E diferente do engano oitocentista que ainda nos sufoca,
a colaboração foi sempre mais decisiva para a evolução que a competição.

ENCANTAMENTO PARA TODOS pode salvar você do tiroteio: muros e grades jamais.

Sabemos como. Balas não voam sozinhas: seres humanos apertam gatilhos
– porque seu olhar só aprendeu a ver monstros e carros reluzentes.

Mas no meio do tiroteio colhemos flores – e plantamos.
Contra a Cultura do Medo usamos a Magia da Verdade, e fazemos ver
que nenhum ser humano é apenas monstro – nem dentro nem fora dos carros.

Ainda no meio do caos recuperamos o poder de encantar-se com estrelas,
botões de flores, botões de gente.

Devolver às mentes as imagens seqüestradas do Bom, do Belo, do Justo, do Verdadeiro.
Não, não é babaquice: ao cinismo tratamos com sua própria receita: mandamos embora,
pois nunca nos deu nada que valesse a pena.

Que acima de tudo se devolva a cada Ser Humano o seu direito máximo: 
a chance verdadeira de desenvolver livremente seus potenciais.
 Sobretudo, é claro,
no nível do SER, porém sem negar a justíssima, enquanto modesta, importância do Ter.

ENCANTAMENTO PARA TODOS pode salvar você E SEUS FILHOS
do tiroteio: muros e grades jamais.
Sabemos como. Mas é preciso que uma parte dos seus carros novos
seja convertida em recursos para o REENCANTAMENTO DA EDUCAÇÃO DE TODOS.
Apóie este impulso e demonstraremos sua realização – no tempo que você quiser:
um dia, dois anos, três décadas, uma civilização.

Começar a reencantar-se e a reencantar o Mundo: quem pode é VOCÊ.

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QUEM AVISA AMIGO É

carta aberta ao (ex)presidente que jogou fora a chance
de ser o primeiro estadista do 3.o Milênio

Este texto foi escrito e distribuído pela internet em 23.04.2000, domingo de Páscoa, sob o impacto dos acontecimentos do dia anterior.

Na foto acima, o índio Gildo Terena tenta parar as tropas de choque que atacaram a caravana de índios que tentava chegar ao local onde o Presidente da República do Brasil celebrava os 500 anos de ‘descobrimento’ com convidados estrangeiros.

Na foto abaixo, índios levantam símbolos cristãos e integram seu discurso aos ritos da Páscoa, em cerimônias paralelas às oficiais.

As duas fotos foram escaneadas
diretamente de jornais na ocasião.

Começo por esclarecer que não sou ligado a nenhum partido, Sr. Presidente. Sou apenas um cidadão brasileiro de 43 anos, classe média, que gastou todos os seus (modestos) recursos dando aulas a jovens da periferia de São Paulo sem que ninguém lhe pague para isso, por paixão e fé no povo brasileiro.  

Dia 22 fui “sentir a multidão” no show de Caetano Veloso e Dulce Pontes. Acostumado a esses shows no Parque Ibirapuera, estranhei que houvesse tanta tensão no ar. Pessoas pareciam a um passo de brigar por qualquer coisa – e de fato alguma latas e garrafas plásticas voaram, além de gritos. Mesmo gostando da música, havia um mal-estar difuso pelos rostos. Era evidente que a maior parte das pessoas queria ver um show, mas não queria que pensassem que estavam comemorando os 500 anos. “Comemorar o quê?”, foi a pergunta da semana, nos jornais e nas ruas.  

Sou dos que acham que era preciso, sim, comemorar de alguma forma. Mas seria estúpido dizer “a multidão está errada”. Bem mais inteligente é tentar entender a razão dos seus sentimentos. O senhor, como sociólogo, entende essas coisas.  

Observei, então, que nos momentos em que a música era claramente afro-brasileira (no show e antes, com os Meninos do Morumbi) havia grande entusiasmo na platéia. Identificação, mesmo se tratando de brancos. Via diante de mim um povo, com uma linguagem em comum.. Já diante da cantora portuguesa, mesmo gostando, as pessoas pareciam não querer gostar. O mesmo sentimento que se encontrava, dentro e fora do parque,  a respeito das outras celebrações, inclusive as de Porto Seguro.  

Pensei muito no que teria feito a diferença – isto é: o que teria feito as pessoas sentirem 22 de abril como uma festa sua. E cheguei à conclusão de que só existia UMA possibilidade: a de que o senhor, Presidente, houvesse convidado um ou mais representantes dos povos indígenas, bem como um ou mais representantes da comunidade negra, a estarem junto com o senhor em todos os eventos, com tratamento igual ao dado aos representantes de Portugal. E não como jogo-de-cena, e sim de fato ouvindo-os e convivendo com eles.  

Iam lhe chamar de populista ou demagogo? Claro que iam. Por despeito. Pois isso teria tido a grandeza de um verdadeiro gesto de estadista. Estaria, além disso, afinado coma face mais avançada do “espírito do tempo”, de modo que o faria de fato o primeiro estadista notável do novo milênio. A diferença não seria só para o senhor, mas isso, nesse momento, teria restaurado no povo brasileiro a capacidade de sentir-se uma nação – sentimento que, digam o que disserem, atualmente não existe entre nós.  

Não se diga que isso obrigaria a dividir o palanque com representantes oficiais das mulheres, sem-terras, homossexuais etc., pois o senhor sabe que, aqui, não estou falando de “minorias” ou de “excluídos”, e sim dos grandes constituintes estruturais deste povo em termos étnicos, culturais. Poderia ter sido uma celebração do encontro, onde todos são sujeitos. Foi mais uma vez celebração do “descobrimento”, onde um é sujeito e os outros são objetos – ou seja, do milenar expansionismo cultural indo-europeu sobre o mundo. Em seu mal-estar o povo revela compreendê-lo, embora lhe tenha sido negada informação histórica para entendê-lo com plena consciência.  

Não, não falo de “virarmos índios” voltando a formas de vida do passado. Falo de tratar com o devido respeito componentes étnicos massivos, absolutamente presentes e nada minoritários, que continuam tendo sua própria e complexa evolução cultural no anonimato e servidão. Conheci um faxineiro que poderia dar aula de mitologia universal e leitura de símbolos a doutores da USP graças a caminhos de formação “subterrâneos” – mas os doutores com certeza o olhariam como curioso objeto de estudo, e não como interlocutor de igual dignidade – a única coisa que faria deles, doutores, igualmente dignos frente ao olhar da História.  

Confesso que eu mesmo só atinei com a chave da festa no próprio dia 22 – mas o senhor é que é o Presidente, com função de representar este povo inteiro – e, convenhamos, na verdade isso era o óbvio.   O senhor preferiu, no entanto e mais uma vez, delegar as escolhas a outros, deixando para manifestar sua eventual discordância com uma burocrática demissão depois dos fatos.

E não só: preferiu deixar que quaisquer clamores fossem enfrentados com os mesmos métodos que na minha infância e juventude vi usados pelo regime militar. O senhor e amigos têm alegado o fato de terem sido vítimas desse regime, vociferando sua tradição de lutas pela liberdade, como salvo-conduto para fazer qualquer coisa agora. Não cola, Presidente. Os atos de um homem na sua posição são julgados pelo que são em si, no presente, não por sua história pessoal passada.  

Os índios se deram o trabalho de marchar milhares de quilômetros até Porto Seguro porque eram os únicos que estavam levando esta data realmente a sério, Presidente. Não é o momento de entrar no mérito dos outros movimentos envolvidos, mas o senhor sabe que ninguém iria até lá só pelo gosto de ser do contra e encrenqueiro. Fascistas, eles? Não creio que quisessem calar a voz de ninguém, apenas que a deles também estivesse presente, expressão de mais uma parte de um tecido social vasto, complexo – e real.  

Não sabem conviver com a discordância? Ora, Presidente, parece que aí há uma pequena inversão! No mais, faz diferença quando um interlocutor está no poder e sua palavra é praticamente lei, e o outro tem que fazer literalmente horrores para que sua opinião apareça, com freqüência adulterada, em umas poucas linhas de jornal.  

O senhor diz que a discordância tem que se dar nas formas da lei e da ordem. Claro que assim devia ser – se a lei e ordem instituídas de fato representassem a todos. O senhor, como cientista social, sabe que não é assim. Sabe que as regras presentes foram feitas de modo a garantir que os interesses de algumas classes e forças sociais sejam hiper-representados, e que, seguindo essas regras, os interesses da maioria nunca conseguem se fazer valer. O senhor sabe que nosso legal não é expressão do legítimo – mas agora que está do lado de lá parece ter preferido esquecê-lo.  

Enfim, este é o aviso: não há serviço de informação que dê conta de levar adentro dos palácios de Brasília o cheiro da inquietação que está nas ruas, Presidente. Como o senhor sabe, o povo brasileiro detesta a desordem aberta, a ponto de parecer passivo. Mas ninguém agüenta mais sentir que estamos mal e mal sobrevivendo, em meio a desemprego e limitações atrozes, a dores reais, para “estabilizar um país”, e esse mesmo “país” não leva minimamente a sério nossa voz nem nossa existência. Ao empresário o sacrifício atinge como uma empresa fechada, uma casa ou carro a menos. Aqui mais embaixo, Presidente, são milhões de pernas e estômagos doendo (se não de fome, de angústia), de diplomas de Segundo Grau que não atestam aprendizado nenhum, de filhos queridos sem mais horizonte que o horror das FEBEMs – o qual, aliás, uma única frase sua tem poder de canalizar recursos bastantes para resolver, mas o senhor faz de conta que não tem.  

O homem comum está irritado, Presidente. Não identifica com clareza os dados envolvidos, e não sabe aonde dirigir sua irritação. Estão começando a jogar latas uns nos outros. A tensão vem crescendo geometricamente nos últimos meses. Tende a se tornar visível como desordem aberta. Aí vão culpar ideologias e grupos infiltrados – mas o senhor, Presidente, com o que já passou, não vai achar que isso cola, não? Também vão reclamar uma autoridade forte que controle a desordem “que vem de baixo” – quando, o senhor sabe, a desordem foi provocada embaixo pelas decisões de cima.  

É possível que o processo se arraste e só se torne insuportável nas mãos do seu sucessor – e aí o senhor “não teria nada com isso”. Mas será possível que o senhor queira passar à História como um especialista em lavar as mãos, Presidente?!?  

Sabemos que, como nos tempos bíblicos, existem autoridades poderosas mais acima, que “soberania nacional” mal existe nestes tempos de corporações e FMI. Não queremos que seu governo dê murro em ponta de faca, no fim sacrificando a nós todos, como uma Cuba ou Iraque. Reconheço que tem sido um governo “de bom senso” no nível internacional. Mas precisávamos um pouco mais que bom senso, Presidente: sem abrir mão dele, precisávamos um pouco de ousadia, de coragem, de “verás que um filho teu não foge à luta”… Não de força, mas de GRANDEZA, Presidente. Pois já passamos a duvidar que seja ao país que o senhor está protegendo com tanto “bom senso”, pois o país está estropiado. E nada mais patético que um Presidente que protegesse à sua própria pessoa, em lugar de encarnar o país. E jamais se poderá encarnar um país que não se conhece mais, que ficou afastado do outro lado das barreiras policiais.  

Não sou ninguém, Presidente. Tento colocar o conhecimento e experiência que tenha a serviço das pessoas em volta, com vistas à construção de uma nação digna, de baixo pra cima, de dentro pra fora, na perspectiva dos séculos. Isso não me garante sequer o acesso a uma página de jornal – mas por alguma razão sei farejar a História no ar, e assim sinto o dever de registrar estas palavras, nem que seja para soltar folhas ao vento. Talvez alguma consiga voar por cima das barreiras policiais, econômicas, institucionais. Se não, pelo menos não me omiti.  

Reafirmo que não tenho envolvimentos partidários – se tivesse diria estas palavras só a alguns, não diante de todos e muito menos do senhor. Faço isso por fé de que este amontoado de pessoas e culturas tem tudo para ser uma das mais belas civilizações que já entraram no palco da História – e que merecemos construir isso vivendo de forma digna desde já. Espero não ser o último a crer.  

Aliás, olho em volta e vejo tantos jovens das classes periféricas, brilhantes na mente ou no coração, lutando para crer em si, e SEI que não sou o último. E é sobretudo a eles, senhor Cardoso, que caberia a um Presidente representar.

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Os REBELDES PROGRAMADOS da Dona Burguesia

… foi um projeto
de jovens que freqüentavam a Trópis,
a Associação Monte Azul e o ‘Colégio Zulmira”, no mesmo bairro.

O nome fazia referência
às vias internas das favelas (onde morava boa porte desses jovens) e ao mesmo tempo à forma brasileira de falar português,
incorretamente ainda julgada incorreta. 

Me pediram pra escrever um artigo aqui para uma nova revista feita por jovens, para jovens… eu que neste ano de 1998 já fiz meus 41 aninhos… Faz sentido?

Bom… talvez sim… porque entra ano, sai ano, e eu continuo sem engolir o papo de que “as coisas são assim mesmo, querer mudar o mundo é para trouxas.”

E… entra século sai século, espírito de juventude foi sempre o de não se conformar com o que está aí – não apenas pelo gosto de discordar, mas porque sempre houve mesmo coisas que precisavam ser mudadas, e geralmente foram os jovens quem teve a coragem de apontar.

Só que aí… tem um paradoxo (uma coisa que pela lógica não podia ser assim, mas é):
em todos os tempos existiram jovens; e em todos os tempos esses jovens tinham uma dose de rebeldia: é, isso aí, vocês não foram os primeiros a perceber que as coisas estão tortas!

E então… por que é que as coisas continuam tão tortas?

Minha aposta é que isso tem razões de dois tipos – e contar pra vocês essa minha aposta é provavelmente o melhor que eu posso fazer aqui neste espaço!

Este texto foi produzido a pedido desses jovens, e nunca publicado até 01.05.2006 (entrada desta página no ar), já que o projeto da revista teve de ser abandonado.

Alguns aspectos do texto podem parecer despropositados hoje, pois são referência a tendências e modismos destacados naquele momento pela imprensa –

 porém não creio que esteja superado
pois o fato básico permanece:
sempre há um modismo sendo vendido aos jovens (e a outros grupos)
como se viesse deles.

Na época a intenção era assinar o texto como “Ralf Rickli,
Especialista em InConFormática

Razão 1: Tempo, tempo, tempo…

Parte A: Os jovens… não continuam jovens pra sempre. Por um infeliz ou feliz fenômeno, com o passar do tempo os jovens costumam virar outra coisa. Verdade que sempre vêm outros jovens, novinhos, só que eles recomeçam a luta quase do zero: aproveitam pouco das revoluções começadas pelos que eram jovens um pouco antes, pois iam ter a impressão de serem meros seguidores, e não verdadeiros rebeldes… E a caravana da sacanagem mundial vai seguindo em frente, enquanto os rebeldes de diferentes revoluções brigam entre si…

Parte B: Ao mesmo tempo, os velhos rebeldes vão sendo “comprados pelo sistema” com vantagens pessoais. É um bom emprego aqui, um carguinho político ali… “Agora ou vou enfrentar o sistema por dentro”, sacumé, e aí, de repente, quando se está em cima, a ordem das coisas já não parece tão ruim assim… “Se está bom (para mim…), porque é que eu vou querer mexer?”

Mas a maior parte nem precisa ser comprada: com a pressão das necessidades da sobrevivência, a sua e a dos filhos que vão vindo, acaba engolindo qualquer condição.

Enfim, numa certa medida, é natural mesmo que a inovação seja trazida pelos que são jovens naquele momento, e que os mais velhos cuidem de bancar os novos jovens. Isso faz parte de uma “ordem cósmica” com a qual é melhor aprender a jogar pois é realmente maior que nós, não vai mudar e nem tem porquê: não é a ordem cósmica quem nos * , é a ordem humana!  

Mas isto é assunto pra outro papo, outro dia. Agora interessa mesmo é ver a…

… uma palavra que eu havia criado
provavelmente em 1994,

e que mais tarde chegou a ganhar a imprensa por via de um movimento de alunos de uma escola de classe média no Alto da Lapa – que receberam a palavra dos jovens da Trópis.

Mas ao contrário do que parece ser regra
no mundo profissional de hoje, esses jovens foram decentíssimos: 

solicitaram por escrito autorização para o uso da palavra, e sempre mencionavam a
Trópis quando entrevistados

Razão 2: A Rebeldia Programada

O sistema é esperto. Percebeu faz muito tempo que os jovens nunca vão deixar de querer ser rebeldes

Rebeldia de jovem é “parte da natureza”, combatê-la seria como enxugar gelo… e o sistema não joga esforço fora. Senão não seria rico e poderoso. 

Mas também não seria se aceitasse viver com ameaças ao seu poder dentro de casa. Qual a saída pra ele, então?

Ora, ele vai lutar com as armas que tem; com a natureza dele. E a natureza do tal sistema é… vender. Todo mundo sabe que ele vende a mãe – e nem sempre entrega

Então: antes que o jovem ameace com sua rebeldia espontânea, oferece-se rapidinho a ele, para comprar, um modelito pronto de “rebeldia”, que não ameace!

Só que… esse modelo não pode parecer light, senão o jovem não vai se sentir rebelde! Afinal, rebeldia tem um lado de destruição: pra fazer as coisas de uma forma nova, é preciso largar uma forma velha. Se ela resiste, a coisa vira luta. (Isso não é o que eu acho nem o que eu quero: só estou descrevendo as coisas como são. Ou eram).

Então, o que é que o sistema faz? Ele vende um modelo que pega o impulso destrutivo saudável do jovem (!) e o volta contra o jovem mesmo!

Exemplo? Tinha o movimento hippie, que reagiu contra o “jeito certinho” dos americanos que, certinhos como eram, despejavam plástico derretido com gasolina em chamas em cima de aldeias no Vietnã. Os hippies rejeitavam essa cultura da morte. Tinham seus erros como todo mundo, mas eram uma afirmação do direito da Vida. Força da natureza, cores, movimento, tesão.

Aí depois de um tempo a imprensa começa a dizer que isso era careta, já tinha passado, que o quente agora era ser punk: cores escuras, símbolos de morte, ferros enfiados pelo corpo. Drogas que não te dizem “olha, as coisas podiam ser mais bonitas na real, não engula a merda que estão te dando!”, e sim que te prendem num amortecimento gostoso mas que não te mostra nada, enquanto carcomem teu corpo & mente rapidamente – pois aí, quando você se toca que embarcou na rebeldia errada, já não tem mais condições de combate! 

Em resumo, a moda proposta foi dizer: “o sistema fez de mim um lixo”… e aceitar ser o lixo, obedecendo o sistema.

Não, gente, o punk não surgiu como um movimento espontâneo, das ruas: tinha um ou outro espontâneo sim, mas aí alguns espertos pegaram, transformaram em estilo e saíram vendendo a idéia. E ficaram ricos. E só virou movimento de massa com muita insistência da imprensa. Eu tava por aí nesse tempo, gente, eu vi…

Tô dizendo que não gosto de punk? De jeito nenhum. Tem punks ótimos. O problema é que é um programa sem futuro, não muda o mundo, apenas tira do combate real os que mais poderiam mudar as coisas (os jovens), fazendo-os combater a si mesmos. Tá na música do Cazuza e Lobão que a Cássia Eller gravou: “eu não posso causar mal nenhum… a não ser a mim mesmo”.  

Ai! Eu adoro esses três, mas essa é de lascar. É de quem engoliu a isca com anzol e tudo, tá sangrando e diz “quero mais”. Aí o sistema se finge de escandalizado, enquanto por outro lado manda um representante cheio de ferros recolher as moedinhas que a nova moda vai rendendo. Se o tal sistema existisse em forma de pessoa, estaria gargalhando de gosto.

Whisky de cana

Eu não sou um seguidor daquele sujeito barbudo, o Karl – vocês sabem, o Marx –, porque afinal não acho que o negócio é ser seguidor… mas a gente tem que reconhecer que ele tinha “umas puta sacada”. Uns 150 anos atrás ele mostrava como funciona “a burguesia”, essa classe de “respeitáveis cidadãos” que manda na “ordem” do mundo faz uns séculos, tirando proveito de tudo, até das coisas menos respeitáveis. Mostrava que essa classe cria até “revoluções” que não revolucionam nada, como forma de “distrair” o impulso de mudança. Como dizem os franceses, “quanto mais muda, mais fica a mesma coisa”.

Mas acho que isso já vem de antes. É como se toda idéia boa, para alívio da humanidade, que Deus ou as Forças do Bem têm (chame como quiser), o diabo vem depressa e põe uma imitação barata no lugar, que continua a opressão. 

O próprio Marx, as palavras libertárias dele foram usadas como fachada por sistemas de opressão. E o JC? O mestre Ióshua? (o Jesus Cristo!): rebelde da gema que vagava de vila em vila “com um bando de malucos” criticando a ordem dominante, pegaram a imagem dele como emblema de um dos maiores sistemas de opressão já inventados!

Aliás, a grande arma desses foi pegar o sexo é misturar com culpa.

Sexo é fogo; como fogo, tem que ser manejado com muita responsabilidade – mas ao mesmo tempo é simples como esquentar café de manhã. Bem usado, garante em cada um de nós a sensação de estar vivo, livre, forte, sem dever nada a ninguém.

Ora, como dominar e tirar proveito de quem está tão bem? Primeiro passo: dizer que pelo sexo, pelo prazer ao qual ninguém foi feito pra resistir, você tem parte com o diabo, com o mal.

Aí esse tipo de “religião” passa a vender perdão para uma “culpa” que ela mesma inventou. E abre caminho para o segundo passo: já que (dizem eles) pelo sexo eu sou do mal mesmo, então que diferença faz entrar mais fundo no mal? 

Sado-masoquismo: o prazer às custas da dor do outro e da auto-destruição. Isso é Revolução Sexual? Revolução sexual falsificada, scotch de cana, com ressaca e tudo! 

Mais uma vez, o que era pra ser Celebração de Vida vira cultura da morte, auto-destruição do rebelde – não sem que o sistema tire sua casquinha, vendendo, vendendo, vendendo e se deliciando de tanto vender.

Proibido pensar?

Hoje, ao que parece, não tem um movimento claro que domine a cena. “Ideologia, eu quero uma pra viver”, cantou o Cazuza – usando a palavra evidentemente no sentido de “filosofia de vida” (que não é o sentido técnico da palavra).

O certo é que os jovens sentem falta de eixos filosóficos para organizar o que percebem por aí, e a Dona Burguesia continua vendendo suas “ideologias” de imitação – o que afinal é parte da sua ideologia de verdade (aqui no sentido técnico). 

Uns exemplos agora de 1998: taí nos jornais dona Erika Palomino marketeando a “cultura clubber”: o que conta é se divertir. E só. 

Não, não tenho nada contra a gente se divertir. Mas… só?  Ai, dá um tédio… Enquanto isso o sistema avança, cada-vez-mais-rico a custa de cada-vez-mais-dor de cada-vez-mais-gente. 

E os únicos que podiam resistir, os jovens, são convencidos que ser crítico é careta, pensar é careta, é melhor não por em risco o sistema e os brinquedinhos que ele vende pra “se divertir”.

É a mesma coisa o Álvaro Pereira Jr., que escreve sobre rock no caderno para jovens de um grande jornal paulista: pra ele é simplesmente ridículo dizer que música, rock, MPB, a que for, pode servir pra pensar, refletir sobre a vida, a existência, o mundo… 

Mas isso costumava ser a marca mais forte da adolescência, não? (vide cadernos & diários). Mas agora, diz o Sr. APJ, é careta e ridículo. O que presta é apenas barulho e quebradeira – desde que somente pra se divertir, nunca com intenção de melhorar alguma coisa no mundo.

Em outras palavras: tão dizendo que jovem só presta pra fazer barulho. Pensar e escolher rumos não é pra jovem nem pra artista.

É pra quem então? Para a ciência, pros especialistas? Pra alguém, sei lá quem, lá em cima? Para a direção das redes de tevê? Aliás, é bom lembrar que esse “jovem” jornalista já foi editor do programa dominical que vem sendo há décadas o mais fantástico instrumento multinacional do emburrecimento nacional de crianças, jovens & adultos!

Você engole esse papel, ou falta de papel, que querem deixar pros jovens? Eu não. Não sei se isso é sinal da velhice chegando!, mas ainda tenho a impressão de que, se alguma coisa vai nos arrastar um pouquinho que seja pra além da * que está aí, ainda vai ser a rebeldia e a força dos jovens que não abrem mão de pensar!

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